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São Paulo e Guariba (SP) – Apesar de mal ter entrado na casa dos 30 anos, Lindiana Soares aparenta ter ao menos 50. São os efeitos, segundo ela, das andanças e armadilhas da vida, fincada basicamente no trabalho do campo. “A praga da cidade grande pegou na roça”, diz contundente à reportagem da Rede Brasil Atual, que acompanhou relatos de canavieiros na cidade de Guariba (SP), a 338 quilômetros da capital. Migrante de Codó (MA), ela vai muitas vezes para a colheita com o marido. Ele a introduziu no consumo da pedra de crack pela primeira vez, há seis anos, durante uma safra difícil, com pouca produção. O consumo de drogas mais baratas, como o crack e a maconha, se alastra abertamente entre os canaviais e nas pequenas cidades do interior.
“Não tem idade e nem sexo para quem está no meio daquilo”, diz a trabalhadora rural, que começa o corte no raiar do sol e termina perto das 16 horas. “Quem não sabe o que quer, acaba se levando pelo que não presta”, afirma. Lindiana diz só ter experimentado “algumas vezes” a droga. No entanto, alguns de seus colegas já sucumbiram aos efeitos do uso até mesmo dentro dos alojamentos das usinas, onde são apontadas condições precárias. “É para esquecer da vida”, justifica. Nos grupos de cortadores, migrantes cada vez mais jovens de cidades do interior da Paraíba, Piauí, Minas Gerais e Pernambuco. Em alguns desses locais, o vício em substâncias tóxicas costumava ser um problema distante.
De volta ao centro do debate em setembro passado, após a divulgação de um estudo na Frente Parlamentar de Enfrentamento ao Crack da Assembleia Legislativa de São Paulo – em que foi observada a incidência da droga em 531 cidades paulistas, além da falta de tratamento adequado aos dependentes –, o avanço do vício é classificado por especialistas como uma “válvula de escape” diante das condições extenuantes de trabalho. Seria a busca pela sensação do estímulo físico proporcionado inicialmente pelo crack. No canavieiro, onde ganha pela quantidade colhida, são exigidas 12 a 15 toneladas ao dia. O uso da força física, com o aumento da produtividade, é imprescindível nesse sistema de corte, onde não se avançou em termos de instrumentos de trabalho.
Os números da lida da cana assustam. Um trabalhador pode derrubar, em média, 400 quilos em dez minutos, além de desferir 131 golpes de facão e 138 flexões de coluna, em um ciclo médio de seis segundos para cada ação. Geralmente, o trabalho é feito sob calor de aproximados 27º C, debaixo de fuligem. Os batimentos cardíacos chegam, em alguns momentos, a 200 por minuto. O levantamento é da Pastoral do Migrante de Guariba, onde a principal atividade econômica é o cultivo da cana-de-açúcar.
“É uma falsa sensação de que, com a droga, eles vão se tornar super-homens”, dispara o padre Antonio Garcia Peres, coordenador da Pastoral. Junto aos integrantes do grupo da diocese, o padre faz visitas regulares aos alojamentos para orientar a respeito do que ele chama de “Ilusão do crack”. Das experiências com os trabalhadores, padre Garcia tira a conclusão de que o prejuízo com o vício não é medido pelos boias frias. “O trabalhador fica com a força toda para trabalhar, não precisa parar nem para comer e, com isso, tem uma boa rentabilidade.” Entretanto, ressalta o padre, “se amanhã falta a droga, o dinheiro que ele ganhou no dia anterior é perdido”. Os malefícios das drogas não seriam percebidos devido à sensação de bem-estar proporcionada.
Tráfico
Muitas vezes a droga chega ao canavial pelos próprios cortadores de cana, de acordo com o padre. Com o valor da diária calculado com base em um salário mínimo por mês – atualmente fixado em R$ 545, com possibilidade de atingir o dobro (dependendo da produção) –, o tráfico do crack tornou-se uma opção para melhorar a renda. Há casos de migrantes condenados pela venda da droga na cidade. “Às vezes, eles não se intimidam nem nos alojamentos das usinas, mesmo sabendo que estão dentro da propriedade da empresa e que, se forem pegos, podem ser mandados embora”, afirma o padre Garcia. As “mulinhas” (pessoas usadas por traficantes para o transporte da droga ao seu destino) podem ser vistas à luz do dia nas redondezas das usinas, e até mesmo no local de partida dos trabalhadores aos canaviais. “Você vai no barraco deles e vê tranquilamente um grupo fumando lá dentro. É uma coisa muito aberta.”
A União da Agroindústria Canavieira (Unica) rebate as afirmações feitas habitualmente pela imprensa e critica o estudo apresentado pelos parlamentares da Assembleia Legislativa. “Não vejo que sentido faz isolar um setor para falar do crack nele. É a mesma coisa que você falar do consumo de crack entre padeiros, ou ir a uma troca de turno em uma montadora de automóveis, onde passam milhares de pessoas, e ver se existem usuários de crack. Você provavelmente vai encontrar”, justificou Adhemir Altieri, diretor de comunicação da Unica.
A hipótese de o estímulo do uso da droga ser a obtenção de maior rentabilidade está fora da questão, segundo ele. “Isso é um absurdo completo. Não é possível fazer uma avaliação dessas, isso é típico de quem não sabe o que está falando”, ressalta, na defesa de que os casos de consumo de droga no corte na cana são estritamente pontuais.
Mais drogas, mais crimes
“Vou contar uma coisa para você”, avisa Valdemir Alonso dos Santos, guaribense de 44 anos, canavieiro desde os 15. “Hoje em dia não se mata mais tanto por mulher como pelas drogas. Não é bom nem ficar falando muito não”, frisa o trabalhador. Ele não foi o único a demonstrar receio em revelar o comportamento de seus colegas dentro da roça. O tráfico, que se espalha por todas as frentes no campo, intimida quem resiste ao vício.
Nos três primeiros meses de 2011, Guariba, cidade com 36 mil habitantes segundo dados do Censo do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), registrou cinco homicídios dolosos – quando há intenção de matar –, marcando a cidade como a segunda mais violenta da cobertura do Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo Interior (Deinter 3), que abrange 93 municípios paulistas. No ano passado, foram 12 assassinatos na cidade. As categorias são demarcadas pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, fonte dos dados. O município de Ribeirão Preto, com 604 mil habitantes, é o primeiro do ranking. A disputa por pontos de tráfico e o acerto de conta de dívidas feitas em função das drogas são apontados como principais fatores do crescimento da violência nas cidades pequenas.
Falta de oportunidades
A socióloga Arlete Fonseca de Andrade, do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), relaciona o vício entre trabalhadores do campo ao histórico sofrido deste grupo. Muitos dos migrantes que entram na lida da cana são pequenos produtores rurais, que não tiveram oportunidades de continuar o trabalho ou foram expulsos de suas terras. Para ela, o indivíduo, que não possui rumo e não tem ligação com heranças familiares, perde sua identidade. “Os trabalhadores são marginalizados e ridicularizados. Vivem escutando que são burros, caipiras”, pontua, uma vez que ainda existem casos de analfabetismo entre eles.
“Precisam trabalhar naquilo porque não vão poder atuar em outra coisa”, frisa a socióloga. Arlete fez dissertação sobre o tema por meio de pesquisa em 2003 com trabalhadores rurais na faixa etária de 18 a 36 anos, em Mineiros do Tietê (SP), a 300 quilômetros da capital. No estudo, ela descarta que a incidência do crack tenha ligação direta com o aumento da produtividade.
A contratação safrista de jovens, que têm o perfil mais aventureiro, também atua como fator determinante para que o fenômeno ocorra. De baixa autoestima frente à situação de trabalho degradante, a juventude que enxerga no corte de cana uma chance de emancipação, sente, no entanto, a necessidade de pertencer a um grupo, segundo Arlete. “Em um segmento de usuários de droga pode ter gente bonita, rica, feia, pobre. Pode ser marginal, não marginal. Não interessa a identidade individual dos que compõem o grupo. O objetivo deles é a droga”, exemplifica.
Tratamento precário
Além das doenças que o trabalhador do eito dos canaviais geralmente adquire, como infecções devido a acidentes com o facão, insuficiência pulmonar pela inalação da fuligem da cana queimada, convulsões e outras, os sintomas do vício das drogas também são recorrentes em ambulatórios do interior. O professor Igor Vassilief, médico aposentado do Centro de Toxicologia da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), em Botucatu, no interior do estado, revela que já tratou de casos terminais do uso contínuo do crack. “Essas pessoas ganhavam e vendiam tudo em droga e em bebedeira”, diz. A fórmula mais recorrente, segundo o médico, é a junção da pedra do crack ou o cigarro de maconha com o álcool, resultando em overdoses e episódios de insuficiência cardíaca. Após pouco tempo de uso, o crack baqueia o usuário.
As famílias dos dependentes químicos que adquiriram o vício nas lavouras são as que procuram ajuda médica para seus entes, na medida do possível, em ambulatórios regionais ou universitários. De acordo com o estudo divulgado na Alesp, 79% dos municípios paulistas não têm leitos para dependentes químicos no Sistema Único de Saúde (SUS), com maior impacto nas cidades que têm população inferior a 5 mil habitantes. A deficiência de postos de tratamento força, segundo Vassilief, a ida de pacientes de uma cidade a outra. “Só no ambulatório da Unesp vinham pessoas das cidades vizinhas, como São Manoel, Lençóis Paulista. Da área toda”, relata.
As clínicas de reabilitação de tóxicos ainda são escassas e inviáveis na região do interior. A mais próxima de Guariba fica em Pradópolis, também na região de Ribeirão Preto. Os custos, porém, são inacessíveis aos interessados em começar um tratamento para se livrar do vício. A Unica, entidade representante dos usineiros, não dispõe de programa que acompanhe o avanço da dependência química de seus funcionários.