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Para especialistas, o internato compulsório faz parte de uma política
higienista – Foto: Marcello Casal Jr/ABr
Por Leandro Uchoas
do Rio de Janeiro (RJ)
Há poucos anos, o crack era visto como uma especificidade paulistana. Imagens de crianças fumando eram assistidas, de longe, pelo país inteiro. A droga nunca chegava ao Rio de Janeiro. As explicações para isso são variadas, mas a mais crível é a de que as organizações criminosas não aceitavam a entrada do crack na cidade, pelo seu potencial de extermínio dos mais pobres. A partir de 2006 e 2007, começa a surgir a droga lentamente na cidade, em grande parte porque os novos “líderes” do tráfico de drogas passam a ser adolescentes muito jovens, violentos, sem os peculiares padrões éticos dos criminosos tradicionais.
O avanço de organizações paramilitares em regiões pobres da cidade – as milícias – que se aliam ao Terceiro Comando em algumas áreas, faz com que o Comando Vermelho (CV) perca espaço e seja escanteado para regiões mais pobres. Para sobreviver, o CV passa a comercializar o crack, que é mais barato, nessas regiões.
É a partir da metade de 2008 que a droga se torna preocupação dos cariocas. Em 2009, chega às classes média e alta, e começam a surgir matérias nos jornais, rádios e canais de televisão. Surgem campanhas de conscientização e a prefeitura é obrigada a agir. Em 2011, o consumo ainda segue uma trajetória crescente. No início do ano, uma nomeação chama a atenção dos movimentos sociais. Rodrigo Bethlem, ex-titular da Secretaria Municipal Ordem Pública (SMOP), considerado
o “xerife” do choque-de-ordem do prefeito do Rio Eduardo Paes, assume a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS). No período em que esteve à frente da SMOP, foi constantemente acusado de remover mendigos e camelôs de inúmeras áreas, em nome da “ordem”. Na época, a SMAS era uma pedra em seu sapato, por defender essas pessoas, muitas vezes removidas de forma violenta. Portanto, ficou claro para os movimentos de moradia o que significava a nomeação de Bethlem para a SMAS.
A partir do final de maio, as crianças usuárias de crack conheceram o método novo, lançado por Bethlem. Com o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social nº 20, ele lançava a internação compulsória, gerando muita polêmica. Os agentes da secretaria – homens muito fortes que lembram os funcionários da SMOP – tiram os menores de idade das cracolândias mesmo contra a sua vontade. Não são poucos os relatos de uso intensivo de força. Entidades de direitos humanos e os conselhos regionais de enfermagem, assistência social e psicologia logo se posicionaram radicalmente contra a medida. Também houve apoio da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, da Rede Rio Criança, do Fórum Rio DCA, do Cedeca, do Projeto Legal, e do Fórum de Saúde Mental. Entretanto, são muitos os defensores do método, uma vez que, como todos reconhecem, o crack é uma droga de sérios danos à saúde mental dos usuários, que passam a consumi-lo, não raro, de forma descontrolada e intensa.
“Nós nos juntamos contra a medida. O internato compulsório nunca será o melhor caminho. Para haver sucesso, é preciso haver adesão do usuário e da família. Essa política é higienista, vem de uma política de choque. Ninguém discorda que o crack é terrível, mas não é assim que se trata”, afirma Hilda Correia, da diretoria do Conselho Regional de Serviço Social. “A iniciativa não deveria ter se dado no campo da assistência social, mas no da saúde. Nem sequer houve articulação com a Secretaria de Saúde”, completa. Os conselhos, ongs e movimentos sociais fizeram um ato público no dia 25 de julho e lançaram um manifesto de repúdio à política da Secretaria.
Contradição
Segundo as organizações, o método contraria a legislação do país. A Lei 10.216 afirma que “a internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários”. As organizações também afirmam que a política se contrapõe ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Entretanto, a medida da SMAS tem encontrado amplo apoio de autoridades da Justiça, a começar pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux. A internação compulsória foi definida em comum acordo com o Ministério Público estadual e a Vara de Infância e Juventude.
Ao comentar sobre a mobilização contrária à política, Rodrigo Bethlem é agressivo. “Essa gente vive fazendo demagogia há muito tempo. Queria ver se falariam o mesmo se fosse o filho deles fumando crack. Ou o poder público faz alguma coisa, ou essas crianças vão morrer. O governo deveria ser responsabilizado pela omissão histórica, e não por estar tomando medidas. É muito fácil fazer tese acadêmica com o filho dos outros”, diz. O secretário considera que a opinião pública está amplamente a favor da medida. Uma integrante do Conselho Regional de Psicologia que não quis se identificar reconhece. “A população está sendo, aos poucos, convencida pelos meios de comunicação de massa. Existe uma construção em curso, de que o crack é uma ‘epidemia’, algo a ser combatido com urgência. As pessoas estão desinformadas, e criam um anseio de resolver o problema a qualquer custo”, diz.
“Essa lógica é totalmente oposta à Política Nacional de Saúde Mental, e às políticas voltadas à população de rua. Nega diretrizes do ECA, que reivindicam direito à convivência familiar”, afirma. Para a psicóloga, esse modelo em implantação “é parte desse projeto de limpeza urbana em implantação no Rio de Janeiro. Não é exagero considerar que isso tem relação com esse processo que a cidade vem vivendo”. O Rio de Janeiro é sede das Olimpíadas de 2016 e da final da Copa do Mundo de 2014, além de uma série de megaeventos de diferente natureza, como o Rock in Rio, a Rio+20, a Copa das Confederações e o Encontro Mundial da Juventude Católica. Por isso, o Rio vive uma rede complexa de reformulações urbanas, consideradas elitistas. Um exemplo disso ocorreu nesta semana, quando a prefeitura limitou o horário de funcionamento das feiras de rua.