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Claudemir Gilberto Ramos acredita que se voltar a Rondônia será morto por policiais ou fazendeiros (Foto: Reprodução TVT)
“Estou sofrendo uma prisão psicológica.” Faz 16 anos que Claudemir Gilberto Ramos, de 38 anos, tem a cabeça a prêmio. Pelo que se sabe, são R$ 50 mil por sua morte. “Para mim, já estou cumprindo a pena até demais, mesmo não estando na prisão. Só não me entreguei porque acho injusto. Se tivesse cometido crime, tinha que pagar pelo que fiz, mas não cometi o crime.”
Claudemir se considera um “foragido da injustiça”. Desde que ocorreu o massacre de trabalhadores rurais em Corumbiara, a 700 quilômetros de Porto Velho (RO), ele não sabe o que é endereço fixo, trabalho com registro em carteira ou convívio familiar. Condenado a 2.008 anos de reclusão, reclama um novo julgamento e uma efetiva apuração dos fatos ocorridos na madrugada de 9 de agosto de 1995, quando ao menos 12 sem-terra foram mortos por policiais militares e pistoleiros na Fazenda Santa Elina.
Esta semana, Claudemir quebrou o silêncio pela primeira vez desde a época do massacre, em entrevista concedida à Rede Brasil Atual e à TVT. Tenso, contou que não sabe quando foi a última vez que viu as filhas nem a mãe, e expôs sua versão do ocorrido, que na visão da Organização dos Estados Americanos (OEA) representa um erro cometido pelo Brasil devido às execuções realizadas por policiais e ao júri repleto de inconsistências.
Claudemir e seu colega Cícero Pereira Leite foram condenados com base em uma peça do Ministério Público Estadual que se baseou quase que exclusivamente na investigação da Polícia Civil. Esta tomou como fundamento a apuração conduzida pela Polícia Militar, envolvida na operação.
Relatório de 2004 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA), concluiu que eram necessários novos esfoços de investigação. “A falta de independência, autonomia e imparcialidade da Polícia Militar (…) constitui violação do Estado brasileiro”, defende o órgão. Nas palavras de Claudemir, não se pode pagar por um crime que não se cometeu: “O julgamento foi totalmente preconceituoso. Para mim, quem tinha que ser condenado eram os mandantes”.
Os fazendeiros apontados como responsáveis pelo aliciamento de uma milícia armada que se infiltrou entre policiais foram impronunciados pela Justiça, quer dizer, as acusações foram descartadas antes mesmo de haver julgamento.
O lavrador explica que teme pela própria integridade física, por isso não se entregou em 2004, quando se esgotaram os recursos no Judiciário e ele passou a ser considerado um foragido. “Tenho certeza que se me entregar e for pra Rondônia não demora muito eles (fazendeiros e policiais) me assassinam, porque o preconceito da Polícia Militar é grande pela morte do tenente”, afirma. A referência é a um dos policiais que morreram no enfrentamento dos trabalhadores.
No sistema prisional de Rondônia, as cabeças têm preço. Urso Branco, na capital de Porto Velho, registra episódios de graves chacinas. A recorrência faz com que o local seja considerado como o mais grave na história dos presídios brasileiros desde o massacre do Carandiru, ocorrido na década de 1990 em São Paulo.
A noite do crime
A ocupação da Fazenda Santa Elina teve início em 15 de julho de 1995. Na tarde de 8 de agosto, quando havia uma ordem judicial para a remoção dos sem-terra, uma negociação definiu que em 72 horas haveria uma nova conversa para definir sobre a saída, segundo Claudemir. Os acampados queriam garantias de que a área seria destinada à reforma agrária. “Até comemoramos entre os familiares, fizemos assembleia geral achando que tinha (sido) conquistado um passo da vitória porque a área já estava negociada”, resume Claudemir.
Na madrugada, no entanto, um grupo invadiu o local a balas. “A gente não pode ser hipócrita. A gente tinha vigília no acampamento, até porque já tinha recebido vários ataques dos jagunços. Tinha arma de caça, ferramentas, só que (com) nossas armas era impossível combater o comando da polícia e dos jagunços”, relembra
A legislação brasileira proíbe que ações de reintegração de posse sejam cumpridas durante a noite. Na troca de tiros, morreram três policiais e dois trabalhadores. Claudemir nega que tenha culpa nos episódios: “O que fiz foi me deitar no chão. Só ouvi os gritos das pessoas. Não tinha como fazer nada. Fiquei ali de bruços no chão. A única arma que eu tinha, que eu tava usando no dia da negociação, era uma máquina de foto, que no dia seguinte, na tortura, foi quebrada na minha cabeça.”
Já dominados os trabalhadores, a polícia deu início a uma série de agressões, torturas e execuções que são documentadas em depoimentos e análises técnicas. Os adultos foram amarrados e jogados ao chão, enquanto as crianças eram obrigadas a pisoteá-los. Uma menina que tinha seis ou sete anos recusou-se a fazê-lo e acabou morta, segundo os relatos. Claudemir relata que homens sofreram mutilação dos testículos e alguns mortos tiveram os pescoços cortados por motosserras. Os trabalhadores foram obrigados a comer terra misturada ao sangue. Nessa etapa, há oito execuções extrajudiciais comprovadas.
Tortura e perseguição
Foi ali que Claudemir começou a driblar a morte. “Não tinha um comando, um chefe, mas eles me consideravam um chefe. Teve uma pessoa que falou que eu era o chefe, foi onde começou a tortura.” Com a cabeça ferida por baionetas, ele desmaiou e, segundo testemunhas, foi jogado em um caminhão em que foram transportadas as vítimas. Ele conta que acordou no necrotério. Lá, representantes da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do PT já haviam se inteirado do massacre e pressionaram para que fosse preservada a vida dos feridos.
Não era o suficiente para intimidar os mandantes da matança. Transferido para um hospital em Vilhena, Claudemir sustenta que recebeu a visita de dois policiais militares que só não conseguiram ir adiante graças à chegada de uma enfermeira. Na capital Porto Velho, a presença de policiais civis tampouco freou o ímpeto de matar o trabalhador, que se viu forçado a começar uma vida peregrina.
Em 2000, o Tribunal de Justiça de Rondônia agendou uma série de julgamentos sobre o caso. O Ministério Público defendeu a tese de que Claudemir e Cícero convenceram as mais de 2 mil pessoas que integravam as 500 famílias a ocupar Santa Elina. O promotor Elício de Almeida Silva defendeu, então, que eles eram culpados pela morte de doze trabalhadores e ainda deveriam responder por cárcere privado, uma vez que teriam impedido a saída dos demais acampados.
“Não achava que ia ser condenado porque não tinha prova nenhuma. Só que no final do julgamento a surpresa foi grande. No corpo de jurado para mim, tudo era ou fazendeiro ou amigo dos fazendeiros”, relata Claudemir. “Para mim, não tem prova, não devo esse crime. Estava lutando pelos direitos dos trabalhadores e isso não é crime”, sustenta.
O colega Cícero Pereira foi condenado a seis anos e dois meses por participação em um homicídio. Pela parte dos policiais, foram sentenciados o capitão Vitório Regis Mena Mendes e os soldados Daniel da Silva Furtado e Airton Ramos de Morais, mas todos ganharam o direito a um novo julgamento. Os demais policiais foram absolvidos, bem como Antenor Duarte, indicado por pistoleiros como mandante do massacre, tendo inclusive premiado com carros os comandantes da operação.
Apoio
Movimentos de defesa dos direitos humanos remeteram o caso ao âmbito da OEA. Em 2004, a CIDH informou que os fatos ocorreram antes do ingresso do Brasil no sistema interamericano de justiça e, portanto, não poderia ser enviado à Corte Interamericana. Mesmo assim, recomendou que o país deveria conduzir uma apuração imparcial e séria, inclusive determinando a participação de cada um dos envolvidos nos crimes, a começar pelos mandantes.
O Comitê Nacional de Solidariedade ao Movimento Camponês de Corumbiara apoia-se no relatório da CIDH para solicitar um novo julgamento. Esta semana teve início uma articulação, com o envio de ofícios à presidenta Dilma Rousseff, à ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos, e à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. “Estamos tentando despertar o interesse de nossa sociedade em torno de uma grande injustiça”, argumenta o padre Leo Dolan, presidente do comitê. “Sem uma reforma agrária séria, os problemas do Brasil não serão resolvidos”, insiste.
Para Claudemir, é a única maneira de deixar de ser um foragido da injustiça. “Sei que estou correndo risco de vida, mas é melhor morrer lutando do que ter sido covarde e não ter lutado por seus direitos.”