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Foto: Reprodução. Ex-capelão da Igreja Católica, Christian Von Wernich, de 69 anos, condenado pela sua participação em sete homicídios, em 31 casos de tortura e 42 seqüestros na Argentina.
Nos três países, a Justiça passou a considerar que estes delitos são imprescritíveis, tendo como base tratados internacionais – o que é um alento para o Brasil. Condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em dezembro do ano passado, devido ao assassinato e desaparecimento de 62 pessoas entre 1972 e 1979, o país irá, mais cedo ou mais tarde, investigar e punir os responsáveis pelos crimes cometidos durante o regime militar.
“Boa parte das supremas cortes latino-americanas tiveram, inicialmente, a mesma posição que a vista no Brasil, de ler a sentença da Corte Interamericana como uma invasão em seus assuntos domésticos”, recorda um integrante do governo brasileiro. Otimista, ele acredita que, assim como os vizinhos, o país avançará para cumprir a determinação da corte internacional. “Nos anos seguintes à publicação das condenações, a organização de medidas para o cumprimento das mesmas é que gerou mudanças de entendimentos e avanços sociais (nos demais países)”, afirma.
O não cumprimento da determinação – o prazo é de um ano para o Brasil adequar suas leis de acordo com o tratado internacional do qual é signatário – fará com que o país fique em descrédito no cenário internacional. “Se a sentença não for cumprida, internacionalmente seremos vistos como um país que não defende os direitos humanos e não tem um Estado de Direito verdadeiramente configurado”, alerta o funcionário do governo.
Túmulo de informações
Por ora, o atraso gritante do Brasil em relação a Argentina, Chile e Uruguai, não só nos coloca em uma posição de descrédito. A falta de acesso aos arquivos da ditadura brasileira faz também com que sejamos o país do Cone Sul que atravanca as investigações sobre a Operação Condor, colaboração militar entre diversos países sul-americanos, com apoio dos Estados Unidos, para reprimir militantes de esquerda. “É uma peça que falta para compreender a Operação Condor. Nunca entendemos porque, com governos progressistas, no Brasil se resiste a abrir os arquivos”, diz a jornalista e ativista chilena Mónica González, diretora do Centro de Investigación Periodistica (CIPER).
Foi no Brasil, relata Mónica, que o general francês Paul Aussaresses passou toda a experiência de tortura e repressão que havia sido testada durante a guerra de independência da Argélia. Com apoio dos Estados Unidos, o Brasil foi o palco de treinamento para militares de vários países. “Para todos os países tem sido um obstáculo e um vazio enorme que o Brasil seja o único país que resiste a investigar. O Brasil teve um papel-chave na articulação dos golpes de estado no Cone Sul. Espero que toda a comunidade brasileira entenda a importância de insistir que se abram os arquivos da repressão no país”, diz a jornalista.
Dilma se encontra com as mães e avós da Praça de Mayo (Foto: Presidência Argentina)
Familiares de vítimas argentinas aguardam que o Brasil investigue os crimes da ditadura militar. São pelo menos doze os argentinos desaparecidos no Brasil, calcula o jornalista argentino Fabian Kovacic. Ele acredita que a visita da presidenta Dilma Rousseff à Argentina sugere que os dois países podem firmar um acordo de colaboração para investigar os crimes das ditaduras. “Imagino que seja uma questão de tempo, nada mais”. Kovacic lembra que pode ser de interesse do Brasil o apoio argentino para investigar as circunstâncias da morte do ex-presidente João Goulart, que morreu em Mercedes, na província de Corrientes.
O governo brasileiro tenta mudar a questão do acesso a informações. Um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados visa acabar com o sigilo eterno de documentos e também veda o sigilo de documentos que possam tratar de violação a direitos humanos. O Brasil também financia o resgate da memória da sociedade civil. Além disso, há o interesse divulgado pela própria secretária especial dos Direitos Humanos de criar uma Comissão da Verdade.
Kirchner foi decisivo para que Argentina retomasse julgamentos (Foto: Divulgação)
Argentina investiga, com interrupções, desde 1983
As investigações e punições dos militares oscilaram bastante na Argentina, desde o final da ditadura, em dezembro de 1983. O último presidente militar, Reynaldo Bignone, assinou, no apagar das luzes de seu governo, uma lei de anistia. No primeiro dia de seu governo, Raul Alfonsín anulou esta lei e, em seguida, criou uma comissão de notáveis para investigar os crimes do regime militar.
Em setembro de 1984, a comissão concluiu um informe com nomes de pessoas desaparecidas e de militares que seriam responsáveis por crimes. Em 1985, os principais comandantes militares foram para o banco dos réus. “Creio que depois do julgamento de Nuremberg não houve outro igual”, diz Fabian Kovacic.
Depois de julgar os principais nomes do regime militar, no entanto, Alfonsín tratou de botar panos quentes. O presidente criou duas leis. A Lei de Obediência Devida estabeleceu que os demais militares haviam apenas cumprido ordem deste alto comando e que, portanto, não deveriam ser responsabilizados. A Lei de Ponto Final quis por fim definitivo nas investigações e julgamentos.
Durante o governo de Carlos Menem, a Argentina teve um retrocesso: o presidente neoliberal anistiou os membros das juntas militares, condenados durante o governo Alfonsín. Durante os governos de Menem e de Fernando de la Rua a Corte Interamericana apontou mais de uma vez em seus informes anuais que o país não cumpria com a investigação de crimes de lesa-humanidade.
Nova guinada ocorre quando Nestor Kirchner assume a presidência, em 2003. Ele envia um projeto de lei para anular as leis vigentes que impediam novos julgamentos. O projeto é aprovado ainda naquele ano. “Causas suspensas começam a ser retomadas em todo o país”, conta Fabian.
Outra ação exitosa partiu das Abuelas de la Plaza de Mayo. Ainda no final da década de 1990, elas pleitearam na Justiça a verdade sobre o paradeiro de seus parentes. Para tanto, se utilizaram da Declaração dos Direitos da Criança, da ONU, que diz que toda a criança tem direito à identidade. “As Abuelas se apresentam à Justiça reclamando que o delito de desaparição forçada de crianças é um crime que segue sendo produzido, enquanto elas não souberem sua verdadeira identidade”, explica o jornalista. O primeiro julgamento por roubo de bebês ocorre em 1998. Na última semana, Jorge Videla e Reynaldo Bignone voltaram ao banco dos réus devido a estes desaparecimentos.
Chile volta a investigar Allende (Foto: Jaume d’Urgell/Flickr)
Mais de cem condenados no Chile
Nos últimos anos os chilenos conseguiram intensificar as punições aos responsáveis por crimes da ditadura militar. De 2008 para cá, o Chile condenou vários integrantes das polícias secretas, oficiais das Forças Armadas, entre outros repressores. A lei de anistia foi feita no país andino em 1979, durante uma suposta abertura do governo chileno – Augusto Pinochet continuou governando o país até 1990.
Neste ano, foi criada uma comissão de justiça e verdade, que chegou a conclusão de que havia mais de 3 mil vítimas de crimes na ditadura militar. Vítima e parentes das vítimas receberam pensões. Até 2004, contudo, apenas crimes cometidos entre 1979 e 1990 tiveram condenações. Para os crimes ocorridos entre 1973 e 1979, período mais duro da ditadura, continuava prevalecendo a lei de anistia. “Muitos juízes seguiam sendo pinochetistas, e seguiam mantendo a mesma posição que antes. Continuavam aplicando a anistia sem investigar”, conta a jornalista Mónica González.
Durante a década de 1990, segundo ela, houve um duro confronto nas esferas jurídica e política. A vitória dos ativistas dos direitos humanos começou a ocorrer entre os juízes. Muitos deles passaram a entender que não era possível aplicar a lei de anistia sem investigar o crime antes. E a Justiça no Chile era um grande canal de informações sobre os crimes da ditadura, informações que começaram a aparecer. “O Chile não passou um só dia de ditadura sem que as vítimas e familiares de vítimas não entregassem relatos de como torturavam, como matavam, quem eram. A história da repressão está nos tribunais”.
Na década seguinte, começaram a prevalecer no Chile os tratados internacionais. O ano de 2004 marcou a primeira vez em que a Suprema Corte pronunciou-se contra a prescrição de crimes de lesa-humanidade. “Desde então, foi tudo muito rápido”, conta Mónica.
Vários processos começaram a ingressar na Justiça e, em 2008, a maior parte deles ingressou na Suprema Corte, o que se repetiu nos anos seguintes. “De 2000 a 2008, a investigação massiva dos casos de desrespeito aos direitos humanos foi feita com rigor no Chile. Ao ponto que, quando chega ao momento de serem julgados de forma definitiva na Corte Suprema, começa a ser condenado um grande número de oficiais. Há mais de cem condenados, mais de oitenta deles presos no Chile”.
O ritmo da Justiça chilena não para. Acaba de reabrir a investigação sobre a morte do ex-presidente Salvador Allende e sobre o bombardeio do Palácio de La Moneda. A batalha política, entretanto, o Chile ainda venceu. “Isto é interessante neste país: os políticos não foram capazes de revogar a lei de anistia”, diz Mónica.
No Uruguai julgamentos são recentes e causam faíscas
A discussão sobre a prescrição dos crimes da ditadura está chegando ao clímax no Uruguai, e pode ter um desfecho em 2011. Esteve na pauta do Parlamento uruguaio em 2010 a votação da anulação da Ley de Caducidad, a lei de anistia do país platino, e só não foi votada por falta de quórum. “A revogação foi apresentada pela Frente Amplia, mas dentro do próprio partido há deputados que não estão de acordo. Até onde sei, não teriam os votos necessários para anular a lei. Em março começou o ano parlamentar novamente, é um projeto que pode ser votado”, conta o jornalista Fabian Kovacic.
Enquanto a anulação não é votada, a Suprema Corte uruguaia vem decidindo caso a caso, se aplica ou não a Ley de Caducidad. Desde outubro de 2009, o tribunal vem considerando que não é válida para crimes contra os direitos humanos, tendo como base o fato de o Uruguai ser signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos. Em novembro de 2010, a Suprema Corte desconsiderou a lei de anistia para 20 assassinatos ocorridos durante o regime militar. Os julgamentos têm gerado fortes reações de grupos de militares aposentados.
O Uruguai começou a julgar crimes cometidos por militares timidamente, quando a Frente Amplia assume o poder com Tabaré Vasquez, em 2005. Vasquez começa a investigar e punir crimes ocorridos entre 1970 e 1972 – a vigência da Ley de Caducidad é entre os anos de 1973 a 1985. O presidente também ordenou que fossem investigados crimes contra uruguaios, com participação da ditadura uruguaia, mas fora do território do país, em Buenos Aires.
Em 2009, ocorre um dos marcos da luta dos ativistas uruguaios. Dois advogados apresentaram um pedido para que fossem julgados os civis e militares que foram responsáveis pelo golpe militar no Uruguai, ocorrido em 1973. No ano seguinte, a Justiça condenou Gregório Alvarez, que foi um dos militares que presidiu a junta de comandantes no Uruguai, e o ex-presidente do Partido Colorado, Juan Maria Bordaberry, por terem violado a Constituição uruguaia. “Isto foi um avanço”, afirma Fabian.
Pressão da sociedade é fundamental para que o Brasil avance na investigação dos crimes da ditadura militar (Foto: Wikimmedia Commons)
Pressão da sociedade
Se o Brasil deseja avançar na investigação e punição de crimes e no acesso à memória da ditadura militar, é preciso também que a causa tenha maior participação da sociedade. “O sucesso ou fracasso das políticas do governo dependerá fortemente da adesão social a esta pauta”, reconhece um membro do governo, que também aponta que, em países como Argentina e Chile, até agora, houve muito mais participação que no Brasil.
Para Fabian Kovacic, a Argentina é o país onde a população está mais conscientizada de que é necessário investigar os crimes da ditadura. “Me parece que o trabalho dos organismos de direitos humanos criou certa consciência social, que a sociedade já toma como necessário investigar”. Fabian afirma que no Chile há a mesma consciência e um trabalho tão forte dos movimentos de direitos humanos, como na Argentina. No país andino, contudo, há uma divisão. “No Chile também há uma consciência muito grande. O que passa é que a sociedade chilena está muito dividida. É um assunto candente, mas há, digamos, um empate técnico”.
No Uruguai, segundo Fabian, os movimentos de defesa dos direitos humanos conseguem mobilizar multidões em Montevidéu, mas isso não se reflete ainda no todo. Nas últimas duas eleições presidenciais, os uruguaios decidiram também se queriam anular a Ley de Caducidad. “Nas duas votações não houve mais de 20% de adesão da população”.
Fabian cita como boa iniciativa para conscientizar a sociedade o ensino nas escolas. “O tema da violação de direitos humanos foi incluído nas escolas”, conta. O governo brasileiro tenta algo semelhante com o programa “Direito à Memória e à Verdade”. Por meio dele, é oferecido curso a professores de ensino médio da rede pública sobre a ditadura militar. Que o futuro nos reserve um país em que os cidadãos se interessem pela própria história.
*Matéria publicada originalmente no Sul21