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No mês de agosto, os responsáveis pela administração e manutenção da Rádio e TV Cultura anunciaram planos de desmonte da maior referência nacional de meio de comunicação público. Por meio de João Sayad, presidente da Fundação Padre Anchieta (FPA), que decide seus rumos, anunciou-se a intenção de demitir 1400 funcionários de todas as áreas no final do ano, criando enorme e inevitável tensão em torno de seu futuro.
“Essas idéias de esvaziamento e desmonte vêm de algum tempo. Como exemplo, os programas infantis, marcas registradas da TV, deixaram de ser produzidos e sobrevivem de reprises. O nível de novas produções é baixo já há alguns anos. O problema não é novo, é que explodiu agora, fruto de uma política que tampouco começou agora”, diz José Augusto de Camargo, o Guto, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
Por conta disso, logo após a disseminação de tal propósito, criou-se o Movimento Salve a Rádio e TV Cultura, formado por diversas entidades da sociedade civil, sindicatos e profissionais da área, a fim de combater mais um golpe de uma gestão voltada ao mercado.
Em entrevista ao Correio, Rose Nogueira, ex-funcionária da Cultura e também do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, afirma que “não há razão alguma para esse desmonte. A TV Cultura tem de continuar com sua programação, como sempre foi, produzindo seus programas, aperfeiçoando cada vez mais sua produção e reverenciando seu próprio produto, que é maravilhoso”.
Por trás da idéia de enfraquecer nossa única emissora aberta de caráter não comercial, reside a persistente lógica de dissolução da ‘coisa pública’, a favor de uma pretensa ‘eficiência’ administrativa, em mais um dos capítulos de transferência do patrimônio público e social à iniciativa privada. “A TV Cultura é um patrimônio do povo paulista e brasileiro. Patrimônio material e cultural, pois é um dos melhores lugares para se fazer televisão, e também histórico, tendo sido local de trabalho de gente como Wladimir Herzog e outros grandes profissionais que passaram por lá”, assinala Rose.
Neoliberalismo, mais uma dose
“Na verdade, a TV tem projeto antigo de mudança de perfil, que é resultado de alguns fatores. Primeiramente, uma falta clara de política do governo estadual para o setor de comunicação e cultura, refletida na TV. Em segundo, a TV não é administrada pelo Estado, tem perfil público e uma administração que guarda certa autonomia, impedindo que o governo se utilize da máquina da FPA para outros fins que não exclusivamente educativos e culturais. O que pode desinteressar certos setores políticos a investir na TV”, esclarece Guto.
Para os dois dirigentes sindicais entrevistados pelo Correio, aquilo que tem sido levado adiante não representa nada mais do que uma ofensiva de cunho neoliberal, similar às que vimos avançar sobre diversos setores de nossa vida. “Como não se sabe o que fazer com aquilo, que aparentemente não tem serventia imediata (por falta de projeto político, necessidade de transparência e limitação quanto ao uso de sua máquina), abandona-se o projeto da emissora pública. Dessa forma, junta-se a fome com a vontade de comer e cria-se o caldo de cultura que os faz tentar levar adiante essa maluquice com a TV Cultura”, explica Guto.
“Não sei de onde bateu essa idéia de desmonte, parece aquelas coisas do tempo do FHC e das privatizações. Aqueles mitos débeis mentais de que a iniciativa privada faz melhor. Se alguma coisa não está indo bem, você muda a administração, não joga ela fora!”, completa Rose Nogueira.
Qualidade incontestável
Como se sabe, a emissora, principalmente por meio de seu canal televisivo, contribuiu sobremaneira para a formação cultural e educacional de amplos setores da população paulista, exatamente o contrário daquilo que oferecem as emissoras comerciais, com seu jornalismo francamente enviesado, ‘atrações’ com as mais torpes explorações de misérias humanas e completo rebaixamento intelectual.
“Ao longo dos anos, ela construiu essa imagem de oferecer uma programação de qualidade, uma espécie de oásis de bom gosto em meio ao que vemos aí”, lembra Guto. Para ele, é exatamente essa a força que deverá sustentar a manutenção da Cultura tal como a conhecemos, longe das mãos do mercado e visões reducionistas de uma emissora cuja missão é prestar bons serviços à sociedade, que por sinal a sustenta.
“A Cultura foi fundada na ditadura militar, mas se construiu através do trabalho de seus funcionários. Foram basicamente os trabalhadores e algumas direções que resistiram à idéia de aparelhamento da TV e conseguiram transformá-la na melhor experiência que já tivemos em termos de TV pública”, lembra Rose.
Ingerência política, resistência e solidariedade
Diante das ameaças, os trabalhadores da emissora buscam se defender. Nos espaços da mídia comercial, essas ameaças são travestidas de necessária transição ‘à modernidade’ ou ‘boa gestão’, como argumentou João Sayad, atual presidente da FPA. No entanto, esconde-se a total ingerência do governo Serra em sua gestão, que dialoga perfeitamente com processos semelhantes nas áreas de saúde, educação, rodovias etc.
Tanto é assim que, recentemente, a emissora demitiu os jornalistas Heródoto Barbeiro e Gabriel Priolli por fazerem matérias e questionamentos sobre os abusivos pedágios das estradas paulistas, política altamente rejeitada por setores da população, que paga as tarifas mais altas do mundo para circular pelo estado. Portanto, mesmo com o posterior recuo nas demissões, é absolutamente indisfarçável a interferência política nos rumos da Cultura, que nos últimos tempos ainda anunciou mudanças na programação, como no Roda Viva, agora apresentado por Marília Gabriela, e na tentativa frustrada de tirar do ar o programa ‘Manos e Minas’, voltado ao Hip Hop e outras manifestações culturais provenientes das periferias de São Paulo.
Aliás, foi exatamente essa empreitada que fez aumentar a resistência ao desmonte da Cultura, pois não se esperava a enorme onda de críticas relativas ao fim do programa, que já voltou à grade. “A questão do Manos e Minas, mesmo que ‘repaginado’ para livrar a cara dos gestores, demonstrou o quanto isso tudo mobilizou a sociedade, o quanto ela estranhou tal decisão. Portanto, não será nada fácil o governo levar a cabo esse projeto de desmontar a Cultura e transformá-la de produtora de conteúdo cultural em mera repetidora de conteúdos de terceiros, comprados no mercado”, atesta Guto.
Além do mais, há uma grave questão em meio ao embate de visões acerca do papel da emissora: o futuro de seus funcionários. “É um absurdo alguém antecipar via imprensa a intenção de demitir 1400 funcionários em dezembro. É pedir pra criar uma crise. Não há razão alguma para esse desmonte”, exclama Rose.
Quanto à resistência dos trabalhadores afetados, ambos os dirigentes entrevistados pelo Correio atestam que a mobilização dos funcionários é forte o bastante para lutar contra essa nova ofensiva pró-mercado. Mas, como não poderia ser diferente, o nível de tensão não fica atrás. “Creio que eles têm uma boa organização, mas mesmo assim estão apavorados, pois é algo que diz respeito a suas próprias vidas. Imagine um profissional com 10 anos de casa, dois filhos, pagando sua casa própria… como fica esse profissional?! Ninguém tem o direito de fazer isso aos outros”, completa Rose, contemporânea de jornalistas que transformaram a Cultura numa representação de “resistência”, como ela mesma diz.
Porém, pela maneira pouco habilidosa de conduzir a questão, o governo terá grandes dificuldades em promover mais um golpe ao patrimônio público. “Além de tudo, 1400 dispensas são demissão em massa, o que é caso para o Ministério Público do Trabalho. Perguntei para algumas pessoas como seriam pagas as indenizações e me disseram que poderiam vender o prédio. Mas, examinando a situação, descobri que não podem vender o prédio, pois é público. Não podem fazer isso”, completa Rose.
“Os funcionários estão mobilizados, a rigor existem duas frentes de trabalho na Fundação: a interna, da TV e Rádio Cultura, e a externa, da TV Justiça e Assembléia, também com funcionários da Cultura que prestam serviços a elas. Um grupo tem de discutir diretamente o futuro da Cultura, e outro precisa se preocupar com o futuro das transmissões da TV Justiça e Assembléia, já que estão lotadas nesses outros canais”, detalha Guto.
“Há belíssimos estúdios, uma maravilhosa equipe… vão fazer o quê? Demitir para comprar fora o mesmo produto que existe em casa, pagando o lucro dos outros? E essas produtoras vão empregar as pessoas com que salários, abaixo daqueles que recebiam?”, questiona Rose.
De olho no futuro
Para o presidente do Sindicato dos Jornalistas, o que estamos a conferir é apenas mais um capítulo que antagoniza setores progressistas e retrógrados de nossa comunicação, que até hoje não se livrou dos monopólios que a controlam. De acordo com ele, o governo Lula levou ao menos a um início da conscientização de que mudanças na área são impreteríveis, além de representarem um forte anseio popular.
“Um ponto importante de ser colocado é o de que a TV Cultura não entrou na rede da TV Brasil, a EBC. Nem a Cultura de São Paulo e nem a TV Educativa do Rio Grande do Sul, ambos os estados sob governos do PSBD, conferindo caráter ideológico no sentido de não priorizar a TV pública. Não foi por acaso que não fizeram parte do projeto, recusando-o deliberadamente. Isso mostra uma diferença importante entre a visão do governo federal e a dos governos do PSDB”, analisa.
Por conta disso, ele ressalta a importância da 1ª. Conferência Nacional da Comunicação, realizada em Brasília no final de 2009, escancaradamente desqualificada e boicotada pelos oligopólios soberanos de nossas comunicações.
“O governo Lula deixou vários problemas na comunicação sem solução. Alguns estão encaminhados, devendo ser finalizados no próximo governo, como as questões da banda larga, da digitalização etc. Ainda assim, destaco três coisas positivas: a realização da Confecom, um inegável avanço histórico; a criação da TV pública, início de um trabalho que é uma referência de respeito; e em último lugar, menos visível, mas significativo, o começo da discussão acerca da distribuição do dinheiro de publicidade”, enumera.
“A Cultura conta com muita simpatia de vários espectros sociais, tanto do povo simples, trabalhadores e donas de casa, como também de estudiosos; dos setores mais populares aos mais intelectualizados, que se preocupam em manter as características especiais, peculiares, diferenciadas, da TV Cultura em relação às outras emissoras comuns”, finaliza José Augusto Camargo.
É essa TV que educa que está sendo atacada. Enquanto isso, as demais navegam em mares sempre tranqüilos, desfrutando de enormes privilégios, a começar pela falta de fiscalização, contrapartida exigida de toda concessão para Rádio e TV. Prossegue, assim, o Brasil como um bastião praticamente imbatível da desigualdade, do que não escapa a arena da comunicação.