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Foto: Felipe Gesteira
Charles Souto de Maceió (Alagoas)
“Eu só vou no pega. Subo calçada, passo entre os carros, entro na contramão. Gosto da adrenalina.” Espremido entre ônibus e carros, no lusco-fusco de Maceió, Jadson Martins não freia sua bicicleta por nada. Sem marcha ou capacete, chinelo de dedo nos pés, ele não participa de nenhuma competição. Depois de nove horas de trabalho, o servente de pedreiro só quer chegar mais cedo em casa.
Deixando para trás a praia de Ponta Verde, onde ajuda a levantar um novo prédio de luxo no metro quadrado mais caro da cidade, Jadson vai costurando becos, ruas e avenidas a pedaladas velozes rumo à sua morada na comunidade Virgem dos Pobres 2, bairro do Trapiche, subúrbio maceioense.
Aos 19 anos, é a primeira vez que trabalha na construção civil. Há oito meses foi contratado como “orelha seca”, alcunha de todos os serventes na obra. Desde então, todos os dias, sai às seis da manhã e só às seis da noite retorna à casa que adquiriu com ajuda do pai, também pedreiro. “Comprei essa casa tem menos de um ano. Dei R$ 4 mil nela e gastei mais R$ 2 mil na reforma”, diz o servente no raro momento em que um sinal vermelho o obriga a cessar por alguns segundos o ritmo frenético de suas pedaladas.
“Estudei até o segundo grau ginasial, mas aí, decidi largar e comecei a trabalhar. Queria sair da casa dos meus pais, ter minha independência, sabe?” Na carteira de trabalho, seu salário não ultrapassa a casa dos R$ 500, mas em alguns meses Jadson chega a receber R$ 700 ou mais. Segundo ele, tudo depende do ritmo da obra e da quantidade de produção – entenda-se: horas extras. “No início da obra tem mais produção e a gente consegue fazer mais. Agora que está acabando, fica mais difícil.” O prédio em que trabalha atualmente será entregue em poucos meses. Terminada a obra, a construtora dará baixa em sua carteira e Jadson ficará na torcida para ser contratado novamente.
Conectado
Mas enquanto o salário estiver garantido no final de cada mês, Jadson parece não se preocupar. “Comprei este smartphone. É chinês, mas tem tudo. Até internet”, fala ao tirar do bolso o aparelho rosa-choque. Ainda não conseguiu habilitar o uso da internet, mas isso não é problema. Toda noite ao chegar do trabalho Jadson acessa o Orkut e o MSN através da internet que instalou e ajuda a manter na casa dos pais. “Pago R$ 40 por mês num acerto que fiz com meu vizinho. Antes a conexão era lenta e caía muito. Essa agora é a cabo e não preciso esperar uma eternidade para assistir os vídeos no Youtube”.
Jadson não precisou da internet para encontrar sua esposa, com quem vive há cerca de um ano. “Conheci ela aqui mesmo na Virgem dos Pobres.” Ainda não formalizaram o casamento – “pra que se está tão bom assim?”. Tampouco planejam filhos. “Ela só tem 15 anos e está no primeiro ano do ginásio. Quando terminar os estudos e eu conseguir um trabalho bom, a gente pensa nisso.”
Investimentos
O servente de pedreiro procura seguir a trilha de outro ciclista que costuma acompanhá-lo em suas pedaladas depois da jornada de trabalho. É o colega Airton Tavares, que começou como servente há oito anos e depois de passar por cinco prédios e um curso profissionalizante, tornou-se gesseiro. “Ganho R$ 750 por mês. Mas quando a produção é boa, chego aos R$ 1 mil”, afirma.
Morando no bairro do Tabuleiro dos Martins, mais do que o dobro da distância da moradia de Jadson, Airton vem e volta do trabalho todos os dias na sua bicicleta. Não há ciclovias no percurso. “São quarenta minutos para ir e para voltar. Se fosse de ônibus, gastaria uma hora e meia e ainda ia naquele aperto. Chego em casa com as pernas doloridas, é verdade, mas depois de um bom banho nem parece que pedalei. E agora que comprei essa bicicleta com marcha melhorou. Sabe como é, tô ficando velho”, relata o gesseiro de 40 anos.
A atual bicicleta lhe custou R$ 230 e não foi o único investimento nos últimos tempos. Airton adquiriu por R$ 180 uma prótese dentária adornada com detalhes prateados, que usa com indisfarçado orgulho. A mesma quantia que despende por mês no consórcio de uma moto: “Entrei nesse consórcio no início deste ano. Parcelas de R$ 185 por mês, no total de cinquenta. É uma moto de 125 cilindradas. Só pra fazer uma graça no final de semana. Não vou abandonar a bicicleta”.
As despesas de Airton não param por aí. Em seu terceiro casamento, arca com a pensão alimentícia dos dois filhos que concebeu com as esposas anteriores. “Na verdade, eu tive três filhos”, corrige, “mas o primeiro morreu com menos de um mês de vida, por causa de complicações no parto. A gente morava no sítio, distante da cidade, e o pessoal da usina não quis liberar o carro para nos levar ao hospital. O parto demorou muito e ele já nasceu quase morto”.
“Pãozeiro”
A usina de açúcar em questão é a Serra Grande, localizada no município de São José da Laje, zona de mata alagoana e terra natal de Airton. Trabalhando em diversos setores do corte de cana desde os 14 anos, depois da morte de seu filho e da expulsão dos sitiantes levada a cabo pela usina, Airton decidiu que era hora de migrar para a capital.
Chegou em Maceió aos 23 anos. Depois de trabalhar por algum tempo com um tio, juntou dinheiro suficiente para comprar um carrinho e começar a vender pão pelas ruas do Tabuleiro dos Martins. O negócio prosperou e comprou sua casa – onde mora até hoje. Passado algum tempo, as vendas esfriaram e ele buscou uma profissão mais estável. Foi então que iniciou sua jornada na construção civil. Mas os tempos de pão não foram esquecidos e até hoje ele é conhecido por todos na obra como “Pãozeiro”.
Poder de consumo
Para muitos, “Pãozeiro” e “Orelha Seca” seriam apenas dois trabalhadores que utilizam suas bicicletas como meio de transporte e que poderiam ser utilizados como exemplo para abordar o tema tão em voga da falta de ciclovias que liguem os bairros populares às regiões centrais das grandes cidades. Mas para Cícero Péricles, isso não é o bastante. Na opinião do professor de economia da Universidade Federal de Alagoas, por trás dos celulares da China, próteses com detalhes prateados, casas reformadas, acesso a internet domiciliar e consórcio de motos, esconde-se um novo fenômeno social que vem se configurando nos últimos anos não só em Alagoas, mas em toda região Nordeste: o aquecimento da economia local originado pelo aumento de poder de consumo das classes sociais mais baixas.
De antemão, Péricles esclarece que seus estudos não omitem os problemas estruturais que ainda vigoram em Alagoas, estado que ostenta o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e as maiores taxas de analfabetismo e mortalidade infantil do Brasil. Exemplo disso, é que 62% dos alagoanos são pobres e destes apenas 4,3% recebem mais de R$ 2 mil por mês. O setor sucroalcooleiro, na mão de apenas seis grupos familiares, domina a economia e a política local, sendo responsável por 94% de todas as exportações alagoanas. Sem contar que o governo do estado tem sua atuação freada por uma dívida pública que não para de crescer e alcançou a casa dos R$ 6,8 bilhões em dezembro de 2009.
Mas é diante desse quadro desolador e aparentemente insolúvel que o professor Péricles traz a informação de que “entre os anos de 2004 e 2008, 300 mil alagoanos saíram da faixa que fica abaixo da linha da pobreza e outros 300 mil saíram da indigência”. No mesmo período, continua, “78.530 novos empregos foram criados, um crescimento de 22,6% em apenas quatro anos. Sem contar que o rendimento real médio do trabalhador alagoano aumentou de R$ 732,84 para R$ 1.058,04, e pela primeira vez na história o consumo dos segmentos C e D ultrapassou o dos segmentos A e B nas compras totais realizadas no estado”.
Impacto econômico
Como explicar esse aparente paradoxo? Para Cícero Péricles não restam dúvidas: esses resultados positivos são resultado do aumento de recursos federais destinados à região, especialmente os oriundos da Previdência Social e dos programas sociais de combate à pobreza. Péricles lembra que “o Nordeste possui 16,5 milhões de famílias. Destas, 14,5 milhões recebem Previdência ou Bolsa Família. Metade das pessoas que recebem salário mínimo no Brasil está no Nordeste. Então, quando o salário mínimo salta de R$ 200 no último mês de FHC para os R$ 545 atuais, imagine o ganho, a explosão na economia”.
No caso específico de Alagoas, Péricles alega que as transferências federais alcançaram o status de principal fonte de renda da população mais pobre. Para comprovar sua tese, relata que somente em 2009 a Previdência Social pagou R$ 2,6 bilhões aos 414 mil beneficiários alagoanos, além dos R$ 182 milhões pagos pelo Seguro Desemprego. Mais da metade da população alagoana é beneficiária do Bolsa Família, que destina mensalmente R$ 40 milhões a 404 mil famílias alagoanas, o equivalente a R$ 480 milhões por ano.
Indústria da cana
Comparando esses recursos com a massa salarial gerada no corte de cana, principal fonte de empregos da economia alagoana, Péricles deixa claro o real impacto causado por estas transferências federais: “Alagoas colheu, em 2008, uma safra recorde de 30 milhões de toneladas de cana, e cada tonelada de cana cortada pagou ao trabalhador R$ 4,00. Mesmo que toda cana do estado fosse colhida manualmente, a renda gerada naquela safra seria de R$ 120 milhões, o que corresponde a apenas uma quarta parte do que o programa Bolsa Família paga a seus beneficiários”.
Encarando essas políticas públicas federais e o consequente empoderamento das parcelas mais pobres da sociedade como pré-condições necessárias para o desenvolvimento do estado, Cícero Péricles é enfático ao concluir que “a perspectiva econômica e social para Alagoas nos próximos anos parece apontar para uma única forte alternativa: a radicalização da parceria Estado-União para realizar, simultaneamente, o processo de modernização social e o crescimento econômico”.
Outro lado
Não é o que pensa, todavia, o historiador e pesquisador alagoano Golbery Lessa. Para ele, “a ideia de que as transferências federais vão salvar Alagoas é uma ideia falsa. Detectar esse aumento significativo das transferências federais para o estado é importante, mas a reflexão não pode parar por aí, se não se torna insuficiente. Mesmo que essas transferências federais se multiplicassem por dez, o subdesenvolvimento alagoano não mudaria”.
É que para Golbery os resultados dessas transferências federais são limitados. Os recursos provenientes dos programas sociais aumentaram de fato a demanda da economia, de salários, de empregos, de insumos. Só que no caso de Alagoas, o aumento da demanda é exportado para outras regiões.
“Como a economia alagoana continua especializada e concentrada em produtos agroindustriais, o aumento das demandas em Alagoas provenientes dessas transferências federais gera mais empregos em São Paulo, na Bahia, em Pernambuco, Sergipe. Ou seja, aumentou o emprego e a economia de todos os estados que Alagoas importa seus produtos. Daí o que a gente tem é um fenômeno dialético. Aumenta muito o consumo, mas a economia continua especializada e concentrada. Pode multiplicar por mil essas transferências! Essa demanda não vai industrializar Alagoas, não vai desenvolver nosso mercado interno. A gente tem que atuar na modificação da estrutura produtiva e não apenas na estrutura distributiva”, afirma o historiador.
Diante deste quadro, Golbery Lessa alerta: “Os problemas de Alagoas não se resolvem fora de Alagoas. As forças populares, as forças progressistas não podem achar que o seu protagonismo seja um elemento menor na superação de nossos problemas. Ele é ainda o elemento essencial dessa superação. Governos podem facilitar esses processos, mas não podem criá-los. É só na mudança do equilíbrio das forças locais que ocorrerá a transformação necessária”.
Ao que parece, não são só bicicletas que “Pãozeiro” e “Orelha Seca” precisam conduzir.