Compartilhe
Por Horacio Verbitsky
O governo da Argentina impediu a entrada de uma “carga sensível” secreta que chegou ao aeroporto internacional de Buenos Aires, em um voo da Força Aérea dos Estados Unidos e sobre cujo emprego não foram oferecidas explicações satisfatórias. A expressão “carga sensível” foi utilizada na segunda-feira passada pela Conselheira de Assuntos Administrativos Dorothy Sarro ao solicitar autorização para que um caminhão com reboque pudesse ingressar na plataforma de operações. O enorme C17, um cargueiro Boeing Globmaster III, maior do que os conhecidos Hércules, chegou na tarde de quinta-feira com um arsenal de armas poderosas para um curso sobre manejo de crise e tomada de reféns oferecido pelo governo dos Estados Unidos ao Grupo Especial de Operações da Polícia Federal (GEOF), que deveria acontecer durante fevereiro e março.
O governo estima que o custo total do transporte e do curso giram em torno de dois milhões de dólares. O curso estava autorizado pelo governo argentino, mas quando a equipe verificou o conteúdo da carga com a lista entregue de antemão, apareceram canhões de metralhadoras, uma carabina e uma estranha mala que não haviam sido incluídas nas declarações. Embora o curso seja destinado às forças policiais argentinas, a carga chegou em um transporte militar e, no aeroporto, foi recebida por funcionários militares e de defesa, os coroneis estadunidenses Edwin Passmore e Mark Alcott. Todas as caixas tinham o selo da 7ª Brigada de Paraquedistas do Exército com sede na Carolina do Norte. Tentaram passar de forma clandestina mil pés cúbicos, equivalentes a um terço da carga que chegou no avião, depois de fazer escalas no Panamá e em Lima.
Doze especialistas militares
A nota que a embaixadora Vilma Martínez enviou em novembro ao ministro de Justiça Julio Alak, que até então também era responsável pela segurança, recordava que a primeira fase do treinamento ao GEOF para o resgate de reféns havia sido realizado em abril, “por meio do qual nos foi solicitado realizar outro mais avançado”. Em outra nota, enviada em 21 de dezembro à ministra de Segurança Nilda Goré, que havia assumido o cargo cinco dias antes, Vilma Martínez informou que Alak havia aprovado a realização do curso e que, para ministrá-lo, chegariam doze “especialistas militares estadunidenses”. Cursos semelhantes foram realizados entre 1997 e 1999, na presidência de Carlos Menem, e 2002, durante os meses em que o ex-senador Eduardo Duhalde cumpriu um período interino no Poder Executivo. O curso não aconteceu durante o governo de Néstor Kirchner e foram retomados em 2009, com o atual governo. O novo curso, de cinco semanas, estava programado para agosto de 2010, mas teve que ser adiado por um episódio semelhante. Naquele momento foi a embaixadora Vilma Martínez que se negou a receber a carga porque a numeração das armas não coincidia com a da lista prévia, o que mostra os conflitos que essa prática produz dentro do próprio governo estadunidense. “Isso é uma vergonha”, disse então Martínez, antes de devolver a carga à Carolina do Norte. Por ordem da presidente Cristina Kirchner, funcionários da Chancelaria e dos Ministérios de Planejamento Geral e da Segurança, da AFIP e da Aduana supervisionaram o procedimento. Logo se uniram técnicos dos ministérios de Saúde e do Interior.
Os meninos da maleta
Em seu livro já clássico “A missão. Promovendo a guerra e Mantendo a Paz com os Militares da América” (The Mission. Waging War and Keeping Peace with America’s Military), publicado em 2003, a jornalista do jornal The Washington Post Dana Priest descreveu a dramática primazia do Pentágono na formulação e execução da política externa estadunidense. Com mais de mil pessoas, o Comando Sul supera a quantidade de especialistas na América Latina das secretarias de Estado, Defesa, Agricultura, Comércio e do Tesouro juntas. Esse desequilíbrio não parou de crescer, e os Estados Unidos tentam exportá-lo a países sob sua influência, que são quase todos. Quando anoiteceu na quinta-feira, Cristina Kichner ordenou selar a mala e retomar a tarefa no dia seguinte, para o qual determinou que a Chancelaria e o Ministério do Interior enviassem uma equipe técnica capacitada para entender do que se tratava. Durante seis horas na sexta-feira, vários marinheiros dos Estados Unidos se sentaram em círculo sobre a maleta, o que sugere a importância que atribuíam a seu conteúdo. Segundo os estadunidenses, trata-se de um software e de material sensível para segurança. Um coronel disse que o conteúdo da mala não poderia ser revelado a céu aberto porque poderia revelar segredos aos satélites que sobrevoavam naquele momento. O avião também continha uma carga com propaganda para ser entregue aos policiais argentinos, que incluía chapéus, coletes e outros presentes. O chanceler Héctor Timermam permaneceu quase todo o dia no aeroporto, junto com o secretário de Transporte Juan Pablo Schiavi, em cumprimento às instruções presidenciais, junto com a equipe de Polícia de Segurança Aeroportuária, da Aduana, da AFIP e com os principais diretores dos setores de Informática, Tecnologia, Segurança e Sistemas do Ministério do Interior. Também intervieram duas inspetoras do Instituto Nacional de Medicamentos (Iname) e da Administração Nacional de Medicamentos, Alimentos e Tecnologia Médica (Anmat).
O juiz penal econômico Ezequiel Berón de Estrada interveio. A embaixada retirou do aeroporto sua equipe hierárquica e se negou a consentir a abertura da mala. Depois de um dia completo de puxões e empurrões, Timerman informou que usaria sua autoridade legal para abri-la. Ele estava acompanhado da gestora principal Patricia Adrianma Rodríguez Muiños, da seção de Importações da Polícia Federal, a quem estava dirigida a carga. Ao comprovar a decisão oficial de prosseguir, e vencido o prazo final de uma hora fixado por Timerman, a embaixada pediu dez minutos de prorrogação até a chegada da chefe de imprensa, Shannon Bell Farrell, ao aeroporto. Tanto ela como o funcionário Stephen Knute Kleppe disseram que não tinham a chave do cadeado. Timerman decidiu que a Aduana abriria o cadeado com um alicate. Quando isso aconteceu, na tarde de sexta-feira, apareceram equipamentos de trasmissão, mochilas militares, medicamentos que, segundo os funcionários, estavam vencidos, pendrives, cujo conteúdo será analisado por especialistas, entorpecentes e drogas estimulantes do sistema nervoso. Entre o material havia três aparelhos para interceptar comunicações. Dentro da maleta também apareceu um envelope supersecreto de pano verde. Como a equipe da embaixada disse que não tinha sua chave, também foi aberto por meios investigativos.
Em seu interior havia dois pendrives rotulados como “secretos”, uma chave I2 de software para informação; um disco rígido também marcado como “secreto”. Códigos de comunicações encriptados e um folheto traduzido em quinze idiomas, com o texto: “Sou um soldado dos Estados Unidos. Por favor, informe a minha embaixada que fui preso pelo país”. Nenhum desses materiais coincide com as especificações que a embaixada enviou à Chancelaria sobre a índole do curso que devia ser ministrado para o resgate de reféns. Depois de presenciar essas descobertas, os funcionários da embaixada decidiram se retirar, apesar do pedido oficial para que continuassem ali, e não assinaram a ata. Na quinta-feira o coronel Alcott disse que não sabia que algo assim houvesse acontecido em nenhum lugar do mundo. As armas e a mala não declarada foram recolhidas e a verificação de seu conteúdo continuou. Por exemplo, os antibióticos, anti-histamínicos, complexos vitamínicos, protetores solares e hormônios encontrados estariam vencidos, segundo suas embalagens. No entanto, o governo quer verificar se tratam-se dos medicamentos identificados nas embalagens e se estão mesmo vencidos. O restante do material, que coincidia com a declaração prévia, foi transportada em um frete da embaixada até a sede da Polícia Montada na rua Cavia. Fontes da embaixada informaram que, em Washington, estava sendo preparado um documento com a posição oficial e que acreditavam que o treinamento seria suspenso. O Departamento de Estado citou o embaixador argentino Alfredo Chiaradía e expressou sua “surpresa” pelo procedimento já que “os Estados Unidos desejam manter relações amistosas com a Argentina”. Curiosa forma de conseguir isso. Qualquer argentino, civil ou militar, que tentar entrar com armas ou drogas não declaradas nos Estados Unidos iria preso imediatamente.
Tradução: Patrícia Benvenuti