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que vive sua maior crise
Katia Abreu e Tadeu Breda
Jornalistas
O quadro dramático envolve ainda um conselho omisso e ingerência política nos programas jornalísticos. Agora, funcionários, ex-funcionários e movimentos sociais mobilizam-se em defesa da emissora (no destaque, cartaz de convocação para ato público em 3/4)
Quase 2 mil funcionários compunham os quadros da TV Cultura no início da gestão de João Sayad na Fundação Padre Anchieta (FPA), em janeiro de 2010. Hoje, pouco mais de metade continua na folha de pagamento.
A reforma administrativa impingida por Sayad desde junho de 2010 demitiu centenas de profissionais da FPA e extinguiu contratos com as TVs Assembleia e Justiça. Exministro do Planejamento (governo Sarney) e ex-secretário estadual da Cultura, ao assumir a presidência da FPA Sayad deixou claro que sua missão era sanear as contas e reduzir a estrutura da emissora, o que implica rebaixar a produção própria a apenas 30% da programação. No início de 2012, foi celebrado um contrato de “parceria” com a Editora Abril e a Folha de S. Paulo, que passariam a produzir programas (a primeira terminaria desistindo); logo em seguida ocorreram novos cortes de jornalistas e de outros funcionários.
Munido de vocação reformadora, após realizar alguns ajustes de gestão na Secretaria da Cultura Sayad teria almejado assumir a presidência da FPA para fazer o mesmo com a emissora. “A TV Cultura não tinha foco, estava envelhecendo e tinha uma administração negligente”, avalia. “Quero trabalhar para que a tevê recupere o mesmo sucesso que teve no passado”.
As glórias do passado, entretanto,
estavam atreladas a repasses do
governo estadual mais generosos
do que os atuais. Eugênio Bucci,
ex-presidente da extinta Radiobrás
e ex-conselheiro da FPA, levantou
dados esclarecedores a respeito do
financiamento da fundação pública:
“Ano após ano, vai escasseando o
investimento público na FPA. Em
2003, ele representava 81,53% da
receita da fundação. Agora, está na
casa dos 50%. Em valores absolutos,
o declínio é dramático: a previsão
de R$ 84 milhões de verba estatal
para 2011 fica 35% abaixo da verba
de 2010” (O Estado de S. Paulo,
11/8/2011). Em 2012, a dotação anual
do Estado deve ficar em torno de
R$ 70 milhões, em um orçamento da
ordem de R$ 150 milhões.
As declarações de Sayad no início
de sua gestão, que incluíram a ameaça
de vender o prédio que sedia a
FPA, evidenciaram que o economista
desconhece a linguagem e a história
da instituição. Numa de suas primeiras
conversas com os funcionários,
relatada no site Salve a Rádio e TV
Cultura, ele criticou programas como
o Autor por Autor (“Quem quer saber
se o João Ubaldo é baiano? Importantes
são os livros dele”) e o clássico
Ensaio (que, segundo ele, tem
“planos ultrapassados”, de “40 anos
atrás”). Na reunião, um funcionário
comentou que, enquanto Sayad se
amparava em planilhas e números,
o que movia os trabalhadores era o
sonho de fazer uma TV pública de
qualidade: “Talvez o senhor tenha
como referência uma calculadora.
Já a nossa referência é esse homem
aqui”, disse apontando para o veterano
Fernando Faro, aclamado diretor
de Ensaio. Sayad, então, perguntou
quem era a pessoa em questão…
A nomeação para a presidência
da FPA de alguém totalmente alheio
ao meio é sintoma de um projeto
político de desmantelamento. “A linha
de toda essa reestruturação é
esvaziar a emissora até que se torne
uma mera retransmissora de conteúdo”,
comenta a jornalista Bia Barbosa,
da Frente Paulista pelo Direito à
Liberdade de Expressão e Comunicação.
O caso da TV Cultura, acrescenta,
é reflexo da lógica do PSDB,
que governa o Estado há quase duas
décadas: “Sucateia o serviço para
justificar a privatização”.
Houve forte reação negativa
ao anúncio de extinção do
programa Manos e Minas,
dedicado ao hip hop e à
cultura da periferia. A
mobilização da sociedade e
de deputados obrigou Sayad
a recuar. O revés pode ter
freado planos semelhantes
A jornalista, que integra o Coletivo
Intervozes, grupo que reúne
ativistas e pesquisadores da comunicação,
ressalta o fato de que no
Brasil a sociedade não percebe a
necessidade de uma TV pública de
qualidade. Ao contrário de muitos
países europeus, que desenvolveram
seus sistemas de TV e rádio a partir
de modelos públicos e estatais, por
aqui essa criação se deu subordinada
a grupos comerciais. “Não temos
um sistema público de comunicação
forte e a própria população não dá
valor a isso. Na Inglaterra, a BBC é
bancada com uma taxa cobrada de
todos os cidadãos. Aqui não é entendida
a relevância disso. A população
não se sente representada”, declara.
Nem sempre Sayad saiu-se vitorioso
no projeto de desconstrução da grade
da TV Cultura. Houve forte reação
negativa ao anúncio de extinção do
programa Manos e Minas, dedicado ao
hip hop e à cultura da periferia. Após
noticiar o fim do programa, Sayad foi
obrigado a recuar. Sérgio Ipoldo, diretor
do Sindicato dos Radialistas e
funcionário da TV Cultura há 25 anos,
acredita que esse revés freou outras
intenções supressivas da direção da
FPA: “Quando anunciaram a retirada
do Manos e Minas da programação, a
sociedade se mobilizou, houve audiência
pública na Assembleia Legislativa.
Isso fez com que eles repensassem
algumas coisas”.
Laurindo Leal Filho, professor
da Escola de Comunicações e Artes
da USP, explica que a TV Cultura
viveu sua fase áurea no início da década
de 1990, quando uma programação
infantil “altamente criativa
e arrojada” fez com que a emissora
sustentasse um recorde de 12 pontos
de audiência no Ibope. “Essa pontuação
nunca havia sido obtida e jamais
voltou a ser registrada”, conta
Lalo, como é conhecido. Guto Camargo,
presidente do Sindicato dos
Jornalistas, destaca a dedicação e o
interesse do corpo de funcionários
como um fator essencial à produção
de programas de alta qualidade, em
contraposição ao descaso de sucessivos
governos: “Foi resultado da
insistência de pessoas que tinham
interesse nisso, tanto da sociedade
quanto os trabalhadores da FPA.
Mas não era parte de plano nenhum,
estava lá porque conseguiam fazer.
Isso foi a tônica dos programas da
Cultura: foram bons por insistência
dos profissionais, nunca em decorrência
de um plano do governo”.
Quanto ao próprio Sayad, vê na
briga por audiência uma das principais
metas e uma das maiores dificuldades
da sua gestão: “É o desafio
comum de todas as televisões. Hoje
não se vê televisão como se via em
1980. Além da televisão, existe internet,
TV a cabo etc”, sinaliza. O
presidente da FPA sublinha que não
irá buscar o aumento no número de
telespectadores a qualquer preço:
“Não faremos o mesmo que a Globo
faz para atrair audiência, mas temos
que nos preocupar com a audiência”.
Sayad acredita que pode barganhar
mais recursos do Estado caso
consiga melhores resultados no Ibope
— além de disputar o dinheiro
da fatia publicitária, que tende a aumentar
com os índices de audiência.
No entanto, no primeiro semestre
de 2011 a audiência da TV Cultura
caiu para 0,8 ponto, o equivalente a
“apenas” 47 mil domicílios, segundo
informou o jornalista Jotabê Medeiros,
de O Estado de S. Paulo. Uma
forte queda, que se refletiu na receita
publicitária: esta ficou 58% abaixo do
previsto. “Isso é resultado da baixa de
investimentos e cria um ciclo vicioso
negativo: sem audiência não conseguem
captar recursos para manter a
emissora”, analisa Bia Barbosa.
A jornalista Bia Barbosa
propõe a criação de um fundo
de financiamento para a
TV Cultura, com recursos
provenientes da taxação do
uso do espectro pelas empresas
comerciais e da venda de
aparelhos de televisão
A entrada de peças publicitárias
na programação da TV Cultura
existe, segundo Sayad, desde 1991.
Porém, se antes os anúncios apareciam
como “apoio cultural” e eram
encarados mais como filantropia
empresarial do que como estratégia
de marketing, a partir dos anos 2000
eles assumiram moldes semelhantes
aos vistos na televisão comercial, o
que fere a natureza da emissora. “O
ritmo da propaganda dialoga com o
consumidor através da emoção: ele
não pode pensar no que vê, deve
apenas comprar. Já a tevê pública
deve relacionar-se com o cidadão
por meio de uma conversa racional,
que faz pensar”, compara Lalo.
Também na opinião de Eugênio
Bucci a publicidade interfere ética e
esteticamente na emissora pública,
descaracterizando-a. “Se sua receita
ordinária vem de anúncios, ela funciona
como uma emissora comercial.
Sua única distinção em relação às
demais será sua natureza jurídica”.
Bia acredita que a solução pode vir
da criação de um fundo de financiamento
composto por várias fontes de
recursos: “O orçamento de uma TV
pública não pode vir todo do governo
e também não pode depender da
publicidade. Uma saída seria pensar
na taxação do uso do espectro pelas
empresas comerciais e da venda de
aparelhos de televisão”.
Em tese, Sayad defende posição
semelhante: “É impossível querer
autonomia e receber uma parcela de
recursos do Estado que seja tão importante
quanto é hoje. Precisamos
de uma fonte de financiamento que
nos dê liberdade”.
Mas, além das barreiras econômicas,
o professor Lalo acredita que
o grande problema da TV Cultura é
institucional. “Existe uma hegemonia
do PSDB que precisa ser rompida. O
Conselho [Curador] tem uma dissidência
muito pequena, que é representada
às vezes pelo reitor de alguma
universidade. É preciso imprimir uma
renovação real nos conselheiros”,
protesta. “A sociedade paulista, que
mantém a FPA através dos impostos,
não tem voz na gestão da emissora e
fica ao sabor dos conflitos internos do
partido que está no poder.”
José Maria Pereira Lopes, que
trabalha na TV Cultura há 32 anos e
é o atual representante dos funcionários
no Conselho, conta que a pauta é
dedicada basicamente a questões administrativas:
“O jornalismo a gente
não discute no conselho. Discutem o
jornalismo em um comitê de programação,
somente com o presidente e
a diretoria”. Ele se queixa da falta de
participação dos 47 membros do conselho
nos encontros mensais: “Têm
decisões que são tomadas com pequenos
quóruns: vinte, vinte e cinco
conselheiros. O secretário estadual
da Educação só apareceu uma vez, o
secretário municipal raramente aparece,
o representante dos estudantes
(UNE) nem uma vez…”.
“A TV Cultura hoje só é
superada no controle pelo
malufismo. Não é uma TV
pública, ela só simula ser.
É TV estatal que vive um
momento de retrocesso”,
conclui o jornalista Rui
Rebelo, representante dos
funcionários com 25 anos de
casa demitido por Sayad
O conselho sequer faz avaliações
periódicas da programação. Assuntos
polêmicos como a demissão de
Gabriel Priolli da direção de jornalismo,
poucos meses após a posse
de Sayad, ou a polêmica entrevista
do delator Cabo Anselmo no programa
de entrevistas Roda Viva não
foram sequer mencionados entre os
conselheiros. “São decisões da diretoria
executiva e do presidente. O
conselho não se mete nisso de jeito
nenhum”, afirma Pereira Lopes.
Rui Rebelo, um dos editores do
Jornal da Cultura em julho de 2010,
época da demissão de Priolli, relembra
o caso: “Ele decidiu fazer uma
matéria sobre pedágio. Não era contra
o governo do Estado, era uma matéria
de interesse público discutindo
o pedágio. O Fernando Vieira Mello
[vice-presidente de conteúdo] mandou
suspender a matéria e afastou
o Gabriel. Com a repercussão ruim
do episódio, no dia seguinte, ele veio
mais miudinho: ‘Houve um mal entendido,
não quero que não dê a matéria;
só acho que está incompleta’. E
mandou ouvir o governo do Estado.
A matéria foi reeditada por gente de
confiança deles e aí sim foi ao ar”.
Antigo funcionário da emissora,
com 25 anos de casa, Rebelo fazia
parte da comissão de funcionários
que discutiu a reestruturação da TV
no início da gestão de Sayad. E, assim
como Marilu Cabañas, representante
dos trabalhadores da Rádio Cultura
na mesma comissão, foi um dos primeiros
a ser demitido na reestruturação.
“Todas as pessoas que tinham
liderança entre os trabalhadores
foram mandadas embora. É clara a
perseguição política”, comenta o presidente
do Sindicato dos Jornalistas,
Guto Camargo.
Marilu, ganhadora de vários
prêmios (Vladimir Herzog, APCA
e outros) por suas reportagens de
cunho social, conta que antes de ser
afastada já havia sido informada pela
diretora da rádio, Gioconda Bordon,
de que Sayad não gostava do formato
de reportagens em séries e documentários
para o rádio, e que sua série
“Vozes da Mata Atlântica”, sobre as
dificuldades enfrentadas pelos moradores
do Vale do Ribeira, seria a
última deste tipo. Ela lembra ainda
que as diretrizes editoriais sofriam alterações
quando mudavam governos
e diretores: “Quando José Roberto
Walker assumiu a diretoria da rádio,
no governo Alckmin, ele já chegou
avisando: ‘Matéria com pobre é uma
grande bobagem’”. Ao relembrar
publicamente este episódio, durante
ato em defesa da TV Cultura realizado
no Sindicato dos Engenheiros
em 3 de abril, a experiente repórter
emocionou-se e não conteve o choro
(vide quadro acima).
Rebelo se recorda de outro momento
em que viu a TV servindo a
interesses políticos. “Quando houve
as inundações em São Luiz do Paraitinga,
Sayad, que na época era secretário
de Cultura, exigia que fizéssemos
matérias todos os dias, com o
objetivo de valorizar a pasta dele e
a intervenção do governo estadual,
em uma obra que seria marcante no
governo Serra”. “A TV Cultura hoje
só é superada no controle pelo malufismo.
Não é uma TV pública, ela
só simula ser. É uma TV estatal que
vive um momento de retrocesso”,
conclui Rebelo.
Ipoldo, dos Radialistas, em declaração
anterior à última onda de
demissões, observou que houve alguma
reposição de pessoal e regularização
de contratações: “Registraram
mais de 150 PJs [pessoas
jurídicas]. Mas a gente ainda está
com problemas: demitiram vários
assistentes de externa e quem estava
trabalhando tinha que dobrar
horário”. Porém, no ato de 3/4, ele
denunciou que não haverá substituições
para os cortes recentes.
Ele explica que a FPA lida com
questões trabalhistas complicadas,
que se arrastam há anos. Há um
processo movido pelo Sindicato
dos Radialistas para o pagamento
à categoria de um reajuste de
12%, referente ao dissídio de 2003:
“Está em fase final no TST [Tribunal
Superior do Trabalho] e gira
em torno de R$ 80 milhões”. Há
também os processos de trabalhadores
que pediram e conquistaram
reintegração à FPA com base na
Constituição de 1988: “Meia dúzia
de supervisores e outros trabalhadores
já voltaram. Supervisores
têm salários em torno de R$ 5 mil;
ficaram 10 anos fora e a TV Cultura vai ter que pagar esses 10 anos
de salários, férias, décimo-terceiro,
Fundo de Garantia… Os processos
estão em fase de cálculo. No TST
de Brasília são cerca de 105, tanto
coletivos quanto individuais, fora
os que ainda estão tramitando em
primeira e segunda instância”.
O imbroglio rendeu uma investigação
do Ministério Público Estadual,
que concluiu que a FPA não
iniciou procedimentos para concurso
público até agora. A decisão mais
recente é de que deve haver concurso
para as funções administrativas,
ficando as funções regulamentadas,
de jornalistas e radialistas, isentas
dessa necessidade. “A FPA entrou
com um embargo para estender a
isenção de concurso também aos
administrativos e o MPE recorreu
pedindo para estender o concurso
para todo mundo. Isso gera apreensão,
porque em outras empresas,
como a CDHU, houve demissões
sumárias para então abrirem concursos”,
conclui Ipoldo.
Roda Viva com Cabo Anselmo foi “desserviço à democracia”
O tradicional programa de entrevistas
Roda Viva escolheu para
sua reestreia ao vivo, no dia 17 de
outubro de 2011, uma figura controversa:
Cabo Anselmo, agente
da Ditadura Militar infiltrado nos
grupos de esquerda, que entregou
diversos companheiros às forças
da repressão — inclusive sua namorada
Soledad Barret Viedma,
que, grávida de um filho dele, foi
trucidada pelo delegado Sérgio
Paranhos Fleury e seus comandados
(em 1973, em Pernambuco).
Sob o comando de Mario Sérgio
Conti, a bancada de entrevistadores
contava com os jornalistas
Fernando de Barros e Silva, Mônica
Bergamo, Fausto Macedo e
Hugo Studart; o desembargador
José Renato Nalini; e um convidado
do entrevistado: Jorge Serrão,
autor do livro O Homem que não
existe – o Cabo Anselmo abre seus
Arquivos. Ninguém ligado às vítimas
da tortura, nenhum familiar
de mortos e desaparecidos políticos,
nenhum ex-preso político.
“Uma irresponsabilidade da TV
Cultura: não garantiram a informação
que é dever da TV pública”,
comenta Maria Amélia Teles, militante
presa e torturada com seu
companheiro e seus filhos. “Fiquei
abismada de ainda ver o programa
se vangloriando de estar recomeçando,
num novo formato. Achei
um desserviço à democracia. É uma
questão que o Estado brasileiro não
enfrenta de forma alguma e a TV
Cultura corroborou isso”, completa.
A assessoria de imprensa da
TV Cultura não conseguiu viabilizar
contato da Revista Adusp
com o âncora Mario Sérgio Conti
para que ele comentasse o caso.
Apenas informou a posição oficial
da emissora, que defende a pertinência
da entrevista “no momento
em que se discute a criação da Comissão
da Verdade”.