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Paira sobre a cabeça dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros grave ameaça de ter salário e direitos ainda mais subtraídos. Está na pauta do Congresso Nacional, mais precisamente na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara, o Projeto de Lei (PL) 4.330/2004, que escancara a terceirização no país para as atividades-fim. A pretexto de regulamentar o sistema que já atinge quase 15 milhões de empregados, a matéria promove uma reforma trabalhista às avessas, cujo único propósito é precarizar ainda mais as condições de trabalho no chão de fábrica nacional.
Nesta entrevista, o advogado trabalhista e previdenciário Thiago Barison, do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, mostra o que está por trás do PL que reuniu e uniu centrais sindicais, ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST), as associações nacionais dos Procuradores do Trabalho (ANPT) e dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), e muitos outros setores sindicais e sociais, que exigem o arquivamento do projeto.
Qual cenário podemos ter caso o PL 4.330 seja aprovado do jeito que está?
Thiago Barison – Um retrocesso histórico. O PL 4330 na exposição de motivos alude a uma revolução na forma de produzir, que tornaria irresistível a terceirização. Não é verdade. O crescimento da terceirização decorre de uma ofensiva política e ideológica contra os direitos trabalhistas. Incide na forma de contratação e não na maneira de produzir, salvo raríssimas exceções em que há altíssimo grau de especialização. Foram as próprias montadoras que criaram empresas “terceiras” para atuarem dentro de suas fábricas, reduzindo direitos e dividindo sindical e politicamente os trabalhadores. Portanto, regra geral, a terceirização é contratação de mão de obra por meio de empresa interposta, que faz o que os franceses chamam pejorativamente demarchandage: comércio de gente.
Será um caos trabalhista?
Thiago Barison – Permita-me alongar mais um pouco para explicar porque a aprovação deste projeto significa um ataque duríssimo aos direitos trabalhistas. No início não havia nenhum direito: os empregadores praticamente impunham as condições da contratação. Todo o esforço humano gigantesco, em que houve muito sofrimento, da classe trabalhadora com seus aliados de luta e de organização serviu para construir pouco a pouco um sistema protetivo, que se materializa no direito do trabalho, por lei ou convênio coletivo, que passam a regular toda contratação de força de trabalho. Para ter eficácia, esse sistema tem por objeto a relação de trabalho que ocorre efetivamente na realidade: força de trabalho prestada pessoalmente de um lado, empregador que subordina a execução do trabalho aos fins econômicos de outro. Isto permite ao trabalhador dirigir sua luta diretamente contra quem o emprega. A terceirização significa uma das tentativas que o capital faz para quebrar isso, inserindo entre o dirigente do trabalho e o trabalhador um terceiro, que não dirige, mas se encarrega de contratar e pagar. Numa palavra: trata-se de buscar separar o momento da produção do momento da contratação. Mas ficam lado a lado no trabalho: o “efetivo” e o “terceirizado”! Esse é outro objetivo: dividir a classe trabalhadora e enfraquecê-la.
Quais os pontos críticos e perigosos desse projeto?
Thiago Barison – À luz do que foi dito, o projeto inteiro é perigoso. A essência perversa do projeto está em superar a barreira, ainda que tímida, posta pela Jurisprudência do TST na Súmula n. 331, que proibia a terceirização na atividade-fim. O PL 4330 prevê a possibilidade de terceirização (e de quarteirização) também nas atividades inerentes à tomadora (art. 4º, §2° do projeto). Veja-se a incoerência que denuncia os verdadeiros interesses ocultos por de trás do discurso da “globalização”, das “novas tecnologias” e do “pós-fordismo”! Segundo os defensores da terceirização, ela serviria para fazer com que o empresário restrinja seu foco de atuação à atividade-fim da empresa. O TST comprou esse discurso, legalizou a terceirização das atividades-meio e foi logo terceirizando as atividades de limpeza e segurança do Judiciário, o que gerou uma piora nas condições de trabalho e remuneração desses trabalhadores. Bem, ao expandir essa possibilidade para as atividades-fim, o próprio PL 4330 põe abaixo o discurso da especialização técnica e assume seu verdadeiro intuito: rebaixar salários, diminuir e frustrar a proteção jurídica e dividir e dificultar a luta dos trabalhadores. Num cenário de ausência de liberdade sindical, eis que vigora o monopólio da representação por categorias, os efeitos deletérios da terceirização são multiplicados no plano sindical e político.
Quais as categorias profissionais que poderão ser prejudicadas com essa aprovação?
Thiago Barison – Todas. Ninguém terá, se esse projeto for aprovado, garantia de que será contratado diretamente por aquele que toma e dirige a prestação de seus serviços. Se antes o departamento de recursos humanos ficava em outra repartição da empresa, a terceirização dá um salto e separa da empresa o próprio contrato do trabalhador. Veja-se a tragédia: o empregador abusa e, por exemplo, toma trabalho sem pagar horas extras. Diante da insatisfação do trabalhador, pode responder: “vá ter com sua empregadora”. Mas ele é o empregador na prática. Isto aumenta a confusão e a ineficácia, já conhecida, da proteção jurídica laboral.
O senhor quer falar num aspecto curioso do projeto, qual é ele?
Thiago Barison – O artigo 16 do PL, inciso I, exclui da possibilidade de terceirização o trabalho doméstico. Vejam que interessante. Justamente onde ela poderia representar uma mudança para a condição jurídica informal das milhões de “diaristas” que existem no Brasil. Poderia surgir uma empresa de trabalho doméstico que contratasse com carteira assinada para fornecer, ainda que por dia, às famílias que contratavam domésticas sem registro. A trabalhadora diarista passaria a ter ao menos os direitos da CLT e a Previdência Social obrigatória. E, nessa especulação, poderíamos ir além: ainda que não pensem assim boa parte dos patrões, o ambiente de trabalho é espaço público, no sentido de que ali trabalham pessoas por relações contratuais e não de dependência pessoal. Para a empregada doméstica não. Ela vai a um espaço privado de trabalho, marcado por relações pessoais que dificultam (e são usadas pelas famílias para isso) a negociação em termos contratuais. A terceirização poderia mudar isso, dando maior impessoalidade a esta relação. Eu sou a favor da extinção do emprego doméstico para a limpeza: cada um que cuide de seu espaço privado. Mas nem esse ganho parcial para as diaristas hoje informais, sobre o qual estamos especulando, o empresariado brasileiro defende.
O PL pode significar o aumento de ações trabalhistas?
Thiago Barison – Pode. A empresa terceirizada ou quarteirizada tem maior facilidade para fraudar e não pagar. Quais bens um mero escritório que faz a gestão burocrática de contratos pode ter para pagar uma execução? Meia dúzia de computadores e mesas? É bem diferente, regra geral, da tomadora, que organiza uma verdadeira atividade econômica. Mas o PL 4330 Certamente significará o aumento da duração dos processos: se as tomadoras em cadeia só respondem subsidiariamente, será preciso esgotar sucessivas tentativas de execução para se chegar em quem tem bens. Até lá, fica mais fácil pressionar o trabalhador, que precisa do dinheiro do salário e de seus direitos para o sustento familiar, a aceitar um acordo no Judiciário, que, atolado em processos, virou um especialista em “conciliação”, é dizer, em promover acordos rebaixados. Ora, todas as condições são desfavoráveis ao trabalhador! E quanto mais massificada essa lógica, melhor para os patrões: dá para calcular, lesar no atacado, transigir a menor no varejo e litigar até o final no restante das ações. O PL 4330 aumenta essa tragédia.
Como ficarão as negociações salariais e a organização sindical nos locais de trabalho com o que propõe o PL 4330?
Thiago Barison – Embora o artigo 15 do PL preveja, através da contribuição sindical, a vinculação jurídica do terceirizado ao sindicato representante do trabalhador “contratado direto”, a terceirização divide a base e dificulta a organização sindical. No §2° do artigo 2° do PL está estabelecido que não se forma vínculo de emprego entre o terceirizado e a tomadora. Esta é a porta para a diferenciação entre condições de trabalho e remuneração do terceirizado em relação ao contratado direto. A situação atual, em que a terceirização se difundiu largamente, já dividiu brutalmente a classe trabalhadora. Há sindicatos de terceirizados que não vão aceitar o projeto que nele perderiam sua base de representação para o sindicato representante dos contratados diretamente pela tomadora. Essa divisão já é uma realidade. Penso que o movimento sindical pode fazer o seguinte: (I) não terceirizar seus próprios serviços; (II) lutar contra a terceirização em geral, inclusive a da Súmula 331 do TST; (III) lutar pela liberdade sindical e praticá-la, organizando conjuntamente terceirizados e “efetivos”. Embora sejam desafios imensos, este é o caminho para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e de suas condições de organização sindical e política.