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“Homens encapuzados fazem inúmeras vítimas em mais uma chacina em São Paulo”. “Ônibus são incendiados por criminosos”. “Policial militar é assassinado com vários tiros”. Recentemente, em todas as manhãs os noticiários vêm sendo os mesmos.
Já são 171 mortos – sendo cinco policiais – e mais de cem pessoas baleadas no mês de novembro. Desde junho – quando o índice de homicídios divulgados pela Secretaria de Segurança Pública começou a disparar na capital – 810 pessoas foram mortas.
Na maioria das chacinas, praticadas por homens encapuzados em motos ou carros, a polícia chega logo em seguida, mas na imensa maioria dos casos, não descobre quem são os autores dos crimes. Um fato que não causa estranheza para a advogada e coordenadora do Movimento Nacional de Direitos Humanos de Policiais (MNDHPOL), doutora Sandra Paulino. Ela afirma que pelo menos metade dos policiais militares do estado de São Paulo – cerca de 65 mil – integram os grupos de extermínio que agem nas periferias.
“É uma gama, uma variada prática criminosa. Infelizmente a única coisa que tenho visto e que tem me revoltado muito, é ouvir sempre a mesma desculpa e a mesma mentira das autoridades de que não existem grupos de extermínio e de que não há participação de policiais em conjunto com esses grupos criminosos. A gente sabe que isso não é verdade. Trocou o comando da PM e eles continuam com essa mesma desculpa”, afirma Sandra, que já sofreu atentados a tiros por conta dessas denúncias.
A advogada dos policiais ainda ressalta que o dinheiro, o interesse e, sobretudo, a corrupção, fazem com que PMs se aliem com o crime organizado. “Se aliaram porque um tem o que o outro deseja. Juntou a fome com a vontade de comer”, salienta
Governo e PCC
Segundo uma pesquisa feita recentemente pelo professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Gabriel Feltran, a relação dos regimes normativos do Estado e do crime, que proporciona hegemonia do PCC nas periferias de São Paulo, tem sido responsável pela gestão das taxas de homicídio na capital.
“Quando esse dispositivo funciona como uma fonte unitária da administração da violência [tácito acordo entre os dois lados], as taxas de homicídio caem. Foi assim entre 2001 e 2006, mas sobretudo entre 2006 e 2011. Quando a tensão interna dessa relação se intensifica e passa- se ao registro da guerra entre governo e crime como matriz de práticas de segurança, os registros da violência letal insistem em subir. Assim foi de 1992 até 2001; assim nos eventos de maio de 2006. Assim também parece se configurar o cenário em 2012”, diz um trecho do estudo de Feltran.
Equilíbrio rompido
Para o doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Daniel Hirata, todo esse percurso histórico construiu um equilíbrio delicado entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o governo, mas que agora foi rompido. Ele ressalta que será necessário tempo para que esse tipo de equilíbrio se restabeleça. Para ele, quando isso ocorrer, será mais uma vez o resultado de um acordo entre Estado e crime, e não apenas das “eficazes medidas governamentais” que o grupo dominante no governo paulista reivindica para si.
“Somente considerando as interfaces entre dinâmicas do legal/ilegal e superando essa separação imaginária é possível compreender a história urbana que vai sedimentando a ‘gestão da ordem’ [em sentido amplo] que produz esse equilíbrio precário, cuja expressão menos importante é a contabilidade das taxas de homicídio”, argumenta Hirata, atualmente pesquisador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NECVU- UFRJ).
Achaques
Um estudo realizado em 2011, intitulado São Paulo sob achaque, principal pesquisa já publicada sobre os crimes de maio de 2006, que resultou em mais de 500 mortes em oito dias, analisou precisamente a relação entre as polícias do Estado e o PCC.
Na época, pesquisadores tiveram acesso a um inquérito policial sobre o seqüestro em 2005 do enteado de Marcola (Marco Willians Herbas Camacho, considerado pela polícia como chefe do PCC), que teria sido praticado por policiais civis (Augusto Peña e José Roberto de Araújo).
O próprio delegado que apurava o crime naquele período apontava que havia fortes indícios de que esse evento teria sido a causa da deflagração da crise de 2006.
O outro fato, segundo o delegado, é a sistematização da análise das mortes praticadas por policiais. Foram 122 casos que a pesquisa identificou como indícios de execução praticada por agentes do Estado.
Coincidência ou não, a onda de homicídios este ano começou em junho, após a Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar (Rota) ter matado seis homens, supostos integrantes da facção criminosa.
Daniel Hirata afirma que os achaques de 2006 estão no cerne dos acontecimentos recentes. Entretanto, ele chama atenção de outros fatores que também estão contribuindo para essa onda de violência em São Paulo.
“Já existem relatos, e o que se tornou mais público e notório foi na baixada, de que existem também grupos de policiais que estão disputando entre si a primazia do ‘direito ao achaque’, e o controle de certos mercados informais, ilegais e ilícitos. As mortes de policiais surgem sempre como um ‘ataque do PCC’, apesar de existirem muitas dinâmicas que estão correndo nos subterrâneos dessa guerra, inclusive de policiais entre si”, explica Hirata.
Acordo ineficaz
O governo federal liberou R$ 60 milhões para as ações conjuntas de combate à onda de violência em São Paulo, com início previsto para fim de novembro. A cooperação entre a gestão de Dilma Rousseff e o governo estadual foi formalizada na segunda-feira (12) no Palácio dos Bandeirantes, durante encontro entre o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o governador Geraldo Alckmin. O trabalho deve seguir até o final de 2014.
Estão previstas ações de combate à criminalidade nas rodovias e ao tráfico de drogas, além da troca de informações por parte dos serviços de inteligência e da transferência para presídios federais dos presos envolvidos nos ataques a policiais militares.
Em relação às transferências de presos, o antropólogo e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Paulo Malvasi, ressalta que não resolverá o problema. “A transferência pode cortar a comunicação entre algumas lideranças com suas bases, mas não resolverá as ‘ligações perigosas’ entre setores das polícias e crime organizado”, afirma.
A antropóloga Karina Biondi reforça que essas medidas, apesar de terem algum impacto, também não resolverão o problema por inteiro. “Uma ação nesse sentido pode ter algum impacto, mas certamente ela não dará conta de acabar com o PCC”, aponta.
Ainda de acordo com Karina, a transferência ou o isolamento de presos é uma medida ineficaz quando se procura conter a organização criminosa. “Exemplo disso é o que aconteceu em maio de 2006. Foi justamente quando isolaram aqueles que a segurança pública considerava líderes, que as rebeliões e os ataques tiveram início”, pontua Karina, que atua em pesquisas sobre o Crime Organizado e Dinâmicas Criminais.
O doutorando em Sociologia pela USP e pesquisador do sistema prisional, Rafael Godoi, critica a postura dos governos, visto que foi justamente a transferência de presos, em 2001 e 2002, que ocasionou os ataques contra as autoridades e instituições públicas em ambiente aberto.
“Eles estão tentando resolver o problema da mesma maneira que se criou o problema e que promoveu a transformação na prática do Primeiro Comando da Capital”, salienta.
E as chacinas
Dos seis pontos que foram tirados do acordo entre os governos, nenhum diz respeito às investigações de quem está promovendo as chacinas e derramando sangue nas periferias. Todas as medidas, no entanto, tratam de combater o crime organizado e punir quem está matando os agentes públicos.
Para o analista criminal Guaracy Mingardi, investigar somente um lado não vai conter o problema. “Tem que criar duas forças-tarefa. Uma para investigar a morte de policiais e outra para saber quem está promovendo essas chacinas. Nessas forças- tarefa tem que ter corregedoria da PM também, porque nesses grupos de extermínio têm policial envolvido”, argumenta.
De acordo com Paulo Malvasi, ao não enfrentar o problema dos grupos de extermínio que estão matando muito mais pessoas do que os membros do PCC, o governo permite e legitima os homicídios.
“A postura do governo do estado é a maior responsável pela generalização da violência. Quando o secretário afirma em entrevista que os homicídios que estão ocorrendo nas últimas semanas são causados por ‘brigas de gangues pelo controle de pontos de venda de drogas’, ele mascara o que de fato está acontecendo: a ação de grupos de extermínio, provavelmente com a presença de policiais.” E complementa: “Estamos assistindo ao genocídio de jovens moradores de periferias.”