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Por Marcelo Zelic e Anivaldo Padilha*
A posição dissimulada do Estado brasileiro em não cumprir integralmente a sentença da OEA impõe fronteiras aos direitos humanos, negando a responsabilidade coletiva que temos junto os demais países membros em zelar e desenvolver os instrumentos do direito internacional dos direitos humanos.
A não apuração dos crimes de lesa humanidade praticados nos anos de 1964 a 1985 e a manutenção dos mecanismos de impunidade dos torturadores atingem a todos os brasileiros e brasileiras, de ontem, de hoje e de amanhã, pois nega o caráter especial do direito internacional dos direitos humanos e a jurisdição da Corte Interamericana em nosso país. Destacamos trechos muito claros do voto do Juiz ad hoc(nomeado apenas para este fim) Roberto de Figueiredo Caldas na sentença que condenou o Brasil em novembro de 2010, que mostram nossas responsabilidades.
“Se aos tribunais supremos ou aos constitucionais nacionais incumbe o controle de constitucionalidade e a última palavra judicial no âmbito interno dos Estados, à Corte Interamericana de Direitos Humanos cabe o controle de convencionalidade e a última palavra quando o tema encerre debate sobre direitos humanos. É o que decorre do reconhecimento formal da competência jurisdicional da Corte por um Estado, como o fez o Brasil.”
“Para todos os Estados do continente americano que livremente a adotaram, a Convenção equivale a uma Constituição supranacional atinente a Direitos Humanos. Todos os poderes públicos e esferas nacionais, bem como as respectivas legislações federais, estaduais e municipais de todos os Estados aderentes estão obrigados a respeitá-la e a ela se adequar.”
“Mesmo as Constituições nacionais hão de ser interpretadas ou, se necessário, até emendadas para manter harmonia com a Convenção e com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.”
“Portanto, em prol da garantia da supremacia dos Direitos Humanos, especialmente quando degradados por crimes de lesa-humanidade, faz-se mister reconhecer a importância dessa sentença internacional e incorporá-la de imediato ao ordenamento nacional, de modo a que se possa investigar, processar e punir aqueles crimes até então protegidos por uma interpretação da Lei de Anistia que, afinal, é geradora de impunidade, descrença na proteção do Estado e de uma ferida social eternamente aberta, que precisa ser curada com a aplicação serena mas incisiva do Direito e da Justiça.”
“É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas.”
A posição “vice-versa” do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre a interpretação da Lei de Anistia, questionada tanto na Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF 153) pela OAB, como na sentença condenatória da OEA no caso Guerrilha do Araguaia, exige-nos recordar a clareza e objetividade do juiz Antônio Augusto Cançado Trindade ao se referir à questão da jurisdição da Corte, diz ele:
“A convenção Americana, juntamente com outros tratados de direitos humanos, foram concebidos e adotados com base na premissa de que os ordenamentos jurídicos internos devem se harmonizar com as disposições convencionais, e não vice-versa”.
O STF por força de embargo de declaração feito pela OAB e dos tratados assinados pelo Brasil, mesmo depois de votar a questão em 2010, ainda segue apreciando a ADPF 153. O Ministro Luiz Fux recentemente solicitou informações aos poderes da república sobre a questão e aguarda contra resposta da Presidência da República e do Congresso Nacional. Com o prazo legal vencido, os poderes da república buscam uma “saída” que não existe. A sentença é clara e diz, por unanimidade, que:
“As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.”
“A jurisprudência brasileira fi rme, inclusive placitada por decisão recente do mais alto órgão do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, esbarrou em jurisprudência tranquila desta Corte ao deixar de observar o jus cogens, ou seja, normas peremptórias, obrigatórias aos
Estados contidas na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (também conhecida como “Pacto de São José da Costa Rica”, doravante indicada também somente como Convenção). Em apertada síntese, é por esta razão que o País está sendo condenado nesta sentença, pelas violações à Convenção.”
É preciso denunciar que a Câmara dos Deputados acaba de violar o “Pacto de São José”, agindo na contramão das obrigações assumidas na Convenção Americana, ao negar seguimento ao projeto de lei da deputada Luiza Erundina, que propunha adequar a norma interna produzida com a Lei de Anistia de 1979, à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e à sentença que condenou o Brasil na OEA em 2010.
O governo perdeu a oportunidade de resolver a questão no legislativo, ao ausentar-se das audiências públicas e derrubar a proposta da deputada Luiza Erundina. Se tiver a mesma postura frente à ADPF 153, poderá estreitar as possibilidades de um efetivo cumprimento da sentença e a conseqüente obstrução da justiça, deixando escapar a solução do impasse junto à OEA, também no judiciário.
Com as negativas do Legislativo e do Judiciário ao cumprimento da sentença, resta ao Executivo mudar a interpretação da Lei de Anistia por decreto, o que aponta o tamanho do retrocesso no campo de direitos humanos que vivemos em nosso país e quão distantes os poderes do Estado estão da tarefa de construir e fortalecer práticas democráticas e de respeito aos direitos humanos.
Não se pode presumir limitações ao exercício dos direitos consagrados em tais instrumentos, criando fronteiras e impedimentos para sua concretização.
Pelo cumprimento integral da sentença da OEA.
Cumpra-se.
*Marcelo Zelic é vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de SP.
Anivaldo Padilha é ex-preso político, líder ecumênico metodista e associado de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço.