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“Criou-se um clima de beligerância que não é bom, não é bom para o governo, não é bom para o país, não é bom para a mídia”, afirma Kotscho, que acumula mais de 40 anos de profissão, muitos deles dedicados ao jornalismo investigativo.
Em entrevista à BBC Brasil, Kotscho acusou a mídia brasileira de assumir contornos de partido político, mas também criticou Lula, dizendo que “o presidente da República não tem que ficar criticando a imprensa”.
A crise entre governo e órgãos de comunicação começou a ganhar os contornos de confronto a partir da publicação, no dia 11 de setembro, de reportagem da revista Veja afirmando que um dos filhos da então ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra – que substituiu Dilma no cargo –, comandava um esquema de lobby dentro do Palácio do Planalto, envolvendo inclusive o pagamento de propinas.
A repercussão do caso, com novas denúncias publicadas no jornalFolha de S.Paulo, levou à demissão da ministra, no dia 16.
Leia a entrevista de Ricardo Kotscho à BBC Brasil:
BBC Brasil– A reta final da campanha eleitoral foi fortemente marcada pelo confronto entre o governo do presidente Lula e a imprensa. O senhor, que fez uma carreira como jornalista investigativo e, por outro lado, trabalhou com o governo, o que diria? É possível ser imparcial nesse debate?
Ricardo Kotscho – Sempre se discute a neutralidade do jornalismo, a imparcialidade do jornalismo. Eu não acredito nesses chavões, a grande imprensa sempre diz isso, que eles são imparciais. A partir do momento em que a Dilma disparou nas pesquisas e todos os institutos mostraram que ela pode ser eleita no primeiro turno, a impressão que me dá é que bateu um desespero, tanto na campanha da oposição, que radicalizou no discurso, quanto na mídia. E no Brasil hoje, a grande mídia, a velha mídia, ela se confunde… você não sabe onde termina o Jornal Nacional e onde começa a campanha do Serra. Acho que virou uma questão pessoal dos jornalistas e dos donos dos meios de comunicação com o Lula. Eles simplesmente não admitem que Lula tenha sido eleito, reeleito e agora esteja fazendo um sucessor.
Nesta semana, tive uma conversa com o presidente Lula e disse a ele que achava que ele não deveria entrar nessa guerra, não deveria falar da imprensa, deveria esquecer a imprensa. Os dois lados estão errados, acho que o presidente da República não tem que ficar todo dia falando da imprensa, criticando a imprensa. E, do outro lado, a imprensa não pode ser um partido político, agir como um partido político, que é o que está acontecendo. Nesta semana, houve dois atos públicos em São Paulo. Um em defesa da democracia, da liberdade de imprensa, como se a liberdade de imprensa estivesse ameaçada, e outro, no Sindicato dos Jornalistas (de São Paulo), uma manifestação dos partidos aliados do governo e do movimento sindical, contra o golpismo midiático, contra esses órgãos de imprensa que estão fazendo campanha a favor do Serra e contra a Dilma.
Este é o momento que estamos vivendo agora. Eu não gosto disso, acho que não é bom para o país, não é bom para a democracia brasileira. Mas não é como alguns tentam fazer parecer, que estamos à beira de uma guerra civil, que a democracia está ameaçada, isso não existe. A liberdade de imprensa não está ameaçada. Você pega qualquer veículo, liga qualquer TV, ouve qualquer rádio, nunca tivemos tanta liberdade quanto temos hoje. Eu acho que essa liberdade está sendo abusada, mal usada.
BBC Brasil– O senhor está dizendo que deveria haver um limite à liberdade de imprensa?
Kotscho: Não, não um limite para a liberdade de imprensa. Eu defendo a autorregulamentação da profissão. O espírito do Conselho Federal de Jornalismo, de cuja discussão eu participei quando estava no governo, era o de criar uma entidade – como há em todas as profissões no Brasil – para zelar pela profissão, em defesa da própria profissão e em defesa da sociedade. O modelo que eu acho que funciona muito bem, que nós temos há 30 anos no Brasil, é o modelo do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária). Com o fim da Lei da Imprensa, que todo mundo era contra, que era da época da ditadura, não ficou nada no lugar.
BBC Brasil– A Justiça não deveria cumprir esse papel?
Kotscho: Não cumpre. Foi esse o argumento que usaram quando acabaram com a Lei de Imprensa: não precisa pôr nada no lugar porque o Código Penal e o Código Civil já têm (mecanismos de controle). Não têm. Por exemplo, tem uma questão que eu acho básica, que é o direito de resposta., que a Justiça leva anos para decidir. Esse é um direito básico da sociedade. O controle jamais pode ser exercido pelo Estado. Quando se fala em conselho profissional, não tem nada a ver com o Estado. Eu lamento, como jornalista, essa situação da imprensa, e, como cidadão, esse clima que se criou, que é errado. A imprensa não tem que disputar a eleição, tem que cobrir a eleição, testemunhar, relatar. E do outro lado, acho que o governo foi muito longe nessa briga com a imprensa.
BBC Brasil – O quão longe?
Kotscho – Criou-se um clima de beligerância que não é bom, não é bom para o governo, não é bom para o país, não é bom para a mídia.
BBC Brasil – Se Dilma for eleita, como indicam as pesquisas, o que fica de legado desse confronto? Como será a relação de um possível governo seu com a mídia?
Kostcho – Essa é minha preocupação.
BBC Brasil – Qual o pior cenário?
Kotscho – Acho que um cenário de confronto. Pelo que os grandes meios (de comunicação) mostraram até agora, eles não aceitam a eleição da Dilma, não só por questões políticas, ideológicas, econômicas, mas por uma questão pessoal mesmo. Não aceitam o Lula e, por tabela, não aceitam a Dilma, e a desqualificam. Eu não sei como vai ser esse diálogo.
Lula, mesmo com toda aquela antiga imagem radical, de líder sindical, na verdade sempre foi um negociador, desde os tempos de sindicato. Conversava com todo mundo, com os donos das empresas, dirigentes patronais. A Dilma não tem essa prática que o Lula tinha de falar com o diferente, de dialogar, de conversar horas para tentar chegar a um acordo. Então não sei como é que vai ser.
BBC Brasil– Nós estamos falando do confronto entre governo e mídia, mas precisamos pensar que existe também um público. E, aparentemente, os efeitos desse embate não estão sendo sentidos com grande força, em termos de pesquisa de opinião. Como fica o público no meio desse confronto?
Kotscho – Essa é a questão central, que acho que explica o que está acontecendo. A mídia está se sentindo derrotada, não é o José Serra que está perdendo. No começo, faziam matérias mais simpáticas ao Serra, mais críticas a Dilma, mas dentro da “margem de erro”, vamos dizer assim. De uns tempos para cá, não. É matéria sobre o passado da Dilma, sobre os antepassados búlgaros. Eu acho que eles não aceitam mais uma derrota. E como é que fica o freguês? O eleitor, o consumidor de informação, o leitor? Eu acho que eles não pensaram nisso.
A guerra é tão insana, atingiu um estágio tão forte, tão dramático, que as pessoas não estão mais acreditando. As pessoas não acreditam mais no que diz o Jornal Nacional, a TV Globo, a Veja. As pessoas estão deixando de assinar revistas e jornais, recebo muitos comentários aqui no meu blog falando isso. É preciso ouvir o que pensa o público.
BBC Brasil – O senhor fala de clima de beligerância e de confrontos, mas todo esse imbróglio emana de denúncias, de fatos que foram verificados, não foram desmentidos, e que culminaram com a renúncia da ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, e de outras figuras do governo. Então perguntamos, o papel da mídia, diante desses fatos, não é o de reportar em interesse do público, de fazer essas denúncias?
Kotscho – O papel da imprensa é reportar o que se sabe. O que é estranho é que é muita coincidência. Os fatos noticiados não são de agora. O caso do sigilo fiscal já vem de bastante tempo, do ano passado. Mesmo as denúncias da Casa Civil não são da semana passada. O que é estranho é que é muito planejamento. A Veja deu três capas seguidas com denúncias. A história do sigilo fiscal não teve efeito na pesquisa. Mas essas denúncias (sobre a Casa Civil), segundo o Datafolha, começam a fazer. Se esses problemas existem mesmo, e não estou negando que existam problemas no governo, por que só agora apareceram, por que só agora foram denunciados? Será que foram mesmo os repórteres dos veículos que levantaram essas histórias ou não haveria aí uma central de escândalos, de denúncias?
Tudo o que foi denunciado é questão de polícia, tem que demitir, prender, processar. Agora, a consequência eleitoral de tudo isso, isso tudo vir à tona agora, a poucos dias da eleição… Não tenho provas, mas é estranho que isso aconteça agora.
BBC Brasil – Mas a despeito do momento em que isso está sendo publicado, o senhor acha que há uma outra opção? Qual seria a saída? Não denunciar?
Kotscho – Primeiro, denunciar. Quanto a isso, nenhuma discussão. Todo fato conhecido deve ser publicado. Mas durante uma semana, o jornal Folha de S. Paulo publicou reportagens sobre o passado da Dilma, sobre o sujeito que fez campana na casa dela em Porto Alegre, sobre seus antepassados búlgaros, problemas que ela teve quando foi secretária (de Energia, Minas e Comunicação) em 1994… Então eu pergunto o seguinte: os outros candidatos não têm passado? A população não tem direito de conhecer a história do José Serra, da Marina Silva? Não saiu uma matéria sobre isso. A imprensa tem que mostrar sempre os dois lados.
BBC Brasil – Mas Dilma é uma figura pública relativamente recente em termos políticos, há muita coisa dela que não se conhece.
Kotscho – Concordo plenamente, a Dilma é mais desconhecida que o Serra. Mas o Serra tem um passivo muito maior. Até por conta do tempo dele na política, ninguém passa impunemente por 40 anos na política no Brasil, então não é possível que em 40 anos não tenha nada (sobre José Serra) para que o eleitor saiba e possa julgar a quem é melhor dar seu voto. Porque, no fundo, se trata disso.
BBC Brasil – Na sua opinião, há como dizer que a imprensa está extrapolando seu papel de fiscalização, controle, porque ela desagrada e confronta o governo? Onde e quando pode, se isso é possível, se decidir que a imprensa deixou de servir como uma salvaguarda da democracia?
Kotscho – Tudo depende do momento histórico, da circunstância. Essa mesma mídia da qual estamos falando hoje, sem exceção, apoiou o golpe de 1964. Apoiou não só em editoriais, mas com alguns de seus dirigentes participando de reuniões que levaram ao golpe. São as mesmas empresas de 1964. Em 1968, houve uma divisão, porque oEstado de São Paulo, que foi um dos jornais mais entusiastas do golpe, rompeu com os militares e partiu para a resistência, não aceitou a censura. Os outros aceitaram a censura passivamente até o fim. A Veja na época também não aceitou.
A imprensa teve um importante papel no final da ditadura, mostrando o movimento social, que estava crescendo. Mas não podemos esquecer que, em 1984, houve um momento muito importante no Brasil, que foi a campanha pelas Diretas. Para se ver que a história não é linear, e que não dá para se falar da imprensa brasileira, porque varia de um momento para outro. No começo, o único jornal que cobria a campanha pelas Diretas era a Folha, onde por acaso eu trabalhava. Os outros eram contra. E só entraram aos poucos, à medida que a população foi crescendo nas ruas, quando já não dava mais para ignorar.
Então não dá para se ter uma visão da imprensa como uma coisa monolítica, ela vai muito ao sabor dos seus interesses, das circunstâncias políticas do país.
BBC Brasil – Existe, na sua opinião, uma relação ideal entre mídia e governo?
Kotscho – Não existe, é impossível. Em nenhuma época, em nenhum país do mundo. Governo e imprensa são inconciliáveis, têm um tempo diferente, uma natureza diferente.