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Fernando de la Rúa foi presidente da Argentina de 99 até 2001 (Foto: Divulgação/ Site Presidencial/ Wikipedia)
Buenos Aires e São Paulo – Sergio Bertaccini deixou uma reunião em Barracas, na zona sul de Buenos Aires, e tomou o ônibus que o levaria para casa, em Abasto. Parecia mais uma tarde normal, se é que poderia haver normalidade na Argentina de 2001, em que a pobreza já alcançava 38% da população, e subiria a 53% em menos de cinco meses.
Foi repentina a mudança de cenário daquele 19 de dezembro. Panelas começaram a ser batucadas em todos os cantos da capital, e logo valia bater em tudo que fizesse barulho com qualquer objeto que se tivesse ao alcance das mãos. A bronca era geral: no começo daquele mês o governo de Fernando de la Rúa havia decretado o corralito, que limitava saques bancários a 250 pesos semanais por pessoa. “A verdade é que já não se podia viver”, diz Sergio.
Carlos Días lecionava em um colégio de ensino médio da capital. Quando soube, pelo rádio, que a situação política estava ainda mais tensa que de costume, pediu dispensa e correu até a sede da Juventude Peronista, onde segue militando nos dias de hoje. Chegou a tempo de assistir pela televisão ao pronunciamento em que De la Rúa decretava estado de sítio. Era a gota d’água.
“Não pudemos chegar à Praça de Maio porque já havia começado a repressão. Fomos ao Congresso”, recorda. Entre a Praça de Maio, onde fica a Casa Rosada, sede do Poder Executivo, e o Congresso, são menos de três quilômetros de caminhada pelas avenidas De Mayo e Rivadavia, sempre repletas em ocasiões como esta.
Perto dali, Sergio chegava em casa, levava a todos para a rua e se reunia com os vizinhos para decidir o que fazer. O roteiro não é exatamente original: Praça de Maio. “Fizemos o que qualquer militante faria. Começamos a organizar a resistência, a ajudar gente que não sabia como proceder”, pontua o veterano, hoje integrante do MTL Rebelde, um coletivo político de oposição ao kirchnerismo.
Quando estudante do ensino médio, lutou contra a ditadura (1976-83). Durante o governo de Carlos Menem (1989-99), início da derrocada, somou-se ao movimento piqueteiro, um dos frutos de uma nação marcada pela miséria. Os piquetes como forma sistemática e emblemática de organização tiveram a mesma direção do desemprego: do interior para a capital.
O início simbólico são os movimentos das cidades de Cutral Co, na província oriental de Neuquén, e Tartagal, na nortista Jujuy. Cidades antes com nível de vida médio, passaram a ser povoados miseráveis após a privatização da YPF, a estatal de petróleo. Os novos patrões demitiram aos montes, cortaram direitos trabalhistas e passaram a contratar mão de obra estrangeira ou de outras regiões. Apesar da dura repressão, com mortes, o movimento piqueteiro já se tornava prática concreta. E crescia exponencialmente em 2001.
O estalar de dezembro daquele ano, porém, não foi filho deste ou daquele grupo. Foi o resultado de uma sociedade cansada. “Foi um momento de total tristeza. Era perder a esperança completamente, não se sabia o que iria ocorrer”, lembra Soledad Allarde, à época estudante, sobre os dias em que a Argentina deu adeus ao “mundo estável” prometido dez anos antes por Cavallo. Ungido novamente ao cargo meses antes como salvador da pátria, o ministro da Economia viu seu apartamento, no metro quadrado mais caro do país, cercado por manifestantes enfurecidos que queriam estourar a porta do edifício para sacar de lá o mentor das ideias que conduziram à derrocada.
As horas finais do neoliberal
Ele entrega a carta de renúncia no dia 19. De la Rúa, friamente, aceita, e acredita que isso o salvará. O 20 de dezembro começa com a notícia de que as Mães da Praça de Maio foram reprimidas em frente à Casa Rosada. O país explode outra vez. Todos à praça.
A repressão de senhoras, símbolos da democracia pela luta incansável de busca dos filhos mortos pelo regime autoritário, acende o sinal de que o “gorilismo” segue à solta. E pode voltar. “Ô, que se vayan todos, que no quede ni uno solo” é o canto que unifica – algo como “Que saiam todos, que não fique um único”. Uma frase simples para uma profunda descrença na classe política em geral.
De la Rúa, da União Cívica Radical, chama os caciques do Partido Justicialista na tentativa de formar um governo de coalizão, um gabinete de crise capaz de sustentá-lo. Os líderes peronistas garantem que irão se reunir e lhe dar uma resposta. De fato, reúnem-se, mas o telefone do presidente jamais soará. De la Rúa deixa a Casa Rosada usando um helicóptero. Renuncia no dia 21.
Muitos se sentarão à cadeira presidencial. Nenhum permanecerá nela. “Era combate desde a Praça de Maio até passar a Nove de Julho, principalmente pela Avenida de Maio. Houve problemas por todos os lados. Essa repressão continuou dia após dia, e na primeira semana todos os dias vínhamos à praça”, lembra Sergio. Para o velho militante, começava ali a se definir se seria seguido o caminho do refluxo ou da formação de um novo modelo. Na opinião dele, tomou-se a rota equivocada.