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Mulher faz apresentação no Baixo Centro, no centro de São Paulo no ano passado
A região cortada pelo elevado Costa e Silva, o Minhocão, no centro de São Paulo, rompeu durante dez dias o isolamento imposto pela velha estrutura de concreto. Leonardo Foletto e Lucas Pretti são dois dos promotores do BaixoCentro, um festival que reuniu, do dia 20 de março até domingo (1), milhares de pessoas, em mais de cem atividades culturais nos bairros de Santa Cecília, Barra Funda, Campos Elíseos e Vila Buarque. Sem curadoria, o evento foi organizado de forma colaborativa e horizontal por um grupo de produtoras e entidades civis.
Os recursos partiram de doações na internet, pelo site catarse.me, e por meio de um leilão de arte, para o qual diversos artistas doaram suas obras. As ruas dos bairros em torno do Minhocão sediaram apresentações musicais e teatrais, exposições, performances, cortejos e mais um punhado de atrações.
O Minhocão, ou Elevado, vai desde a Praça Roosevelt, no Centro, até o Largo Padre Péricles, na zona oeste da cidade. Desde sua construção, em 1970, pelo prefeito Paulo Maluf, a região pela qual passa sofreu um processo de degradação social e física. Debaixo dele, há problemas de segurança pública e grandes concentrações de usuários de crack.
Os idealizadores do BaixoCentro, em seus vídeos e textos divulgados na internet, criticam o poder público por considerar a região como um simples caminho para o pesado trânsito de automóveis, tornando-a imprópria à convivência. Os problemas urbanos que a especulação imobiliária causam à cidade, à sua cultura, bem como as políticas instaladas na apelidada “Cracolândia”, no bairro da Luz, e as diversas desocupações ocorridas nos últimos meses motivaram a criação do festival.
Para os organizadores do Baixo Centro, a região do Minhocão é a síntese dos conflitos imobiliários e políticos vividos pela cidade. Foletto e Pretti são integrantes da Casa de Cultura Digital, de onde saiu a proposta. Trata-se de um centro que reúne coletivos e produtoras que desenvolvem projetos culturais e tecnológicos. Abriga produtoras de audiovisual, um clube de hackers e grupos que estudam a relação entre tecnologia e cidadania – a agência de jornalismo investigativo Pública foi a última a se juntar à casa.
A Casa da Cultura Digital fica em uma vila italiana pouco movimentada da década de 1920, na Barra Funda. O lugar serviu de QG aos produtores do BaixoCentro durante os dias em que ocorreu o festival. De lá, planejava-se a montagem das apresentações, como a tenda instalada na praça Marechal Deodoro, que teve oito shows no domingo (1), a intervenção “Homens Caixa”, na qual pessoas vestidas de roupas de caixa de papelão caminharam pela Santa Cecília, e “Onde Vivem os Sonhos”, para a qual foi perfurada a estrutura do Minhocão para a suspensão corporal de um artista.
Leia entrevista de Foletto e Pretti sobre o processo de criação do evento e os problemas urbanos da cidade
Vocês fizeram uma chamada pública para reunir as atrações do BaixoCentro. Por que decidiram montar a programação coletivamente?
Foletto: Fizemos a campanha em março. Foram duas semanas nas quais a chamada ficou aberta, mais duas semanas para pegar todos esses projetos e ver como podíamos viabilizá-los. Depois que a gente começou a chamada pública, recebemos cento e poucos projetos. A nossa ideia inicial era que não existisse uma curadoria. Foi uma grande ‘cuidadoria’. Faz parte da nossa ideia de grande festival. Sempre temos a ideia de cultura livre, de copyleft, bem enraizada. A chamada tinha um único princípio, de que não se podia cobrar nenhuma atividade. Mesmo que elas fossem em algum lugar fechado, tinham de ser gratuitas. E a gente não ia escolher as atividades, de acordo com a nossa curadoria. A ideia é que fossem realizadas todas as atividades possíveis.
Pretti: A gente acha que no BaixoCentro, como movimento de ocupação das ruas, não faria sentido julgar o que é ou não legal. O BaixoCentro não é nossa propriedade. Queríamos fazer algo aberto, horizontal, que se autogerisse. Quem chegou aqui estava alinhando, a maioria das propostas sabia do que estávamos falando. Tanto que a programação foi muito boa. Tem muita coisa incrível que a gente nunca proporia sozinhos. A única coisa que a gente propôs foram as tintas no início.
Como a cultura se relaciona com os problemas sociais do entorno do Minhocão?
Pretti: A gente foi assaltado aqui. Duas vezes. Isso provocou uma discussão sobre a questão da ocupação. Entraram nos finais de semana. E, como aqui as coisas são discutidas coletivamente, não é simples resolver um problema desses. Nós tentamos fazer um espaço aberto, em uma cidade fechada. Se alguém quiser colocar um segurança, vai haver pessoas contra – eu sou um deles. E, discutindo, chegamos à conclusão que se está vazio, é ocupado por alguma coisa, seja por um ladrão, por um craqueiro, por violência, ou seja por cultura. Então qual foi a solução para esses roubos? A gente pôs uma grade, um ou outro cadeado, que não mudou nada no dia a dia da casa, mas sobretudo a gente começou a ocupar as casas aos finais semana, à noite, dar sentido a ela. Levamos esse pensamento à rua.
O Baixo Centro, assim como grande parte da região central, não é habitado, porque tem focos de violência urbana. Esse temor não é um empecilho?
Pretti: É difícil. Tivemos moradores de rua indo nos eventos, e eles já cumprimentam a gente. É criada uma convivência. Durante o festival, tivemos furtos. É isso. Estamos no limite da cidade, convivendo nele. A experiência da rua é porrada por todos os lados. Não tem garantia. A verdade é essa. A gente não garante nada. Se quiser vir, venha. É rua. As pessoas podem ser roubadas? Podem. Eu também posso. Mas vou deixar de me arriscar para entrar na vida murada? Não vou. Essa é a resistência. Vou tomar na primeira, ser assaltado de novo, e ir contra a lógica do fechamento, porque essa é a lógica do mal.
Foletto: Na VoodooHop, debaixo do Minhocão, tinha uma galera que nunca tinha passado a pé no Minhocão, que queria ir embora antes de escurecer, porque achava que era perigoso demais, mas, não, a festa rolou até as 11 da noite, e não teve problema de segurança. E isso de alguma forma vai abrir um precedente para as pessoas usarem o Minhocão em dia fechado, vendo que não tem problema.
E essa “lógica do mal” tem a ver com a da especulação imobiliária?
Pretti: Em todos os sentidos. Por que a rua Augusta não é um boulevard? Por que não fecha aquilo lá e põe um bonde, subindo e descendo o tempo inteiro? Porque a cidade é para os carros. No Baixo Augusta tem três empreendimentos imobiliários, que vão ter 500 pessoas morando em cada, com mais duzentos carros, em cada, em uma rua que já é lotada. Essa é a especulação imobiliária, essa é a vida que interessa. É uma disputa. Usamos o termo ‘guerrilha estética’. Temos isso com o BaixoCentro, e não um enfrentamento violento. É muito mais zombar disso do que uma disputa civil. Vamos rir deles, ocupar, fazer um churrasco na praça, ninguém quer bater na cara de ninguém. Aí entra a questão estética.
Como foi a relação do festival com a prefeitura de São Paulo? Vocês pediram autorização?
Foletto: As ruas são públicas, e não precisamos pedir autorização pra muitas coisas que a gente está fazendo. No cortejo, que foi da Praça Roosevelt até o Largo do Arouche, teve mais de duas mil pessoas. Foi uma ocupação natural, mas acho que não chegou a incomodar. É muito uma coisa de São Paulo: para tudo tem de pedir autorização. A gente não precisa.
Então não houve diálogo com a Secretaria de Cultura?
Foletto: A gente está sempre aberto a conversas. Se eles vierem nos procurar, vamos ver o que dá para rolar. A gente não descarta nada. Se vier patrocínio, alguma coisa, vamos conversar.
E se a prefeitura quiser passar a bancar totalmente o BaixoCentro?
Pretti: Duvido que isso ocorra. A política cultural da cidade privilegia a Virada Cultural. O principal evento, o principal lugar para o qual vai o orçamento da cultura em São Paulo, é ela, que é interessante e massa, mas tem um filosofia de que ‘hoje pode’. Então, hoje o metrô fica aberto, hoje o centro é seguro, hoje a vida é legal, e amanhã a gente volta à vida murada. Eu acredito que quem promove essa política nunca vai sentar com a gente para conversar.
Haverá outras edições do BaixoCentro?
Pretti: Difícil dizer. Eu acho, pelo feeling, pelo que vejo das coisas, que sim. Pensamos em alugar um lugar, um BaixoCentro Cultural. E aí, no ano que vem, teremos uma semana concentrada com coisas do BaixoCentro, com atividades na rua. Mas temos os equipamentos. Não nos custa nada, em um sábado, montar as coisas, levar para de baixo do Minhocão e por um filme. Acho que isso vai acontecer: ações particulares, nas semanas e meses seguintes.
Qual é avaliação dessa primeira experiência?
Pretti: A gente, sem querer, respondeu a uma demanda que estava para explodir. Não é à toa que se põe duas mil pessoas para andarem no Centro, cantando, em um sábado: é só porque é muito necessário. Ninguém teve a ideia genial de fazer isso. Quando você vê a galera tomando a rua mesmo, você vê que a demanda e a causa são muito grandes, é muito urgente. É por isso que falo da disputa pela cidade. A sociedade civil organizada deu uma mensagem clara das políticas que estão erradas em São Paulo, e nem tanto as políticas erradas, mas também a caretice que vem tomando conta da população.