Compartilhe
Por Pedro Carrano de Santiago (Chile)
Como se fosse uma passagem da mitologia grega, em um labirinto, os militantes chilenos buscam hoje se guiar pelos fios dispersos do movimento popular e operário, passados quase quarenta anos do golpe de Estado e da instauração da ditadura do general Augusto Pinochet, em 1973, ação que atingiu a Unidade Popular do presidente Salvador Allende e debilitou a organização popular dos bairros do entorno de Santiago do Chile. Matou o senso de pertencimento de classe. Instaurou o neoliberalismo com toda força.
Mesmo quando a ditadura dá lugar às eleições e o período Pinochet se encerra, em 1988, ainda assim os 23 anos de governo da Concertação que se sucederam não conduziram o país à saída desse labirinto neoliberal. Os recursos e a matéria-prima do solo foram entregues às empresas transnacionais.
Mas isso ainda diz pouco: foi a resistência e a organização obreira, fermentadas no período de substituição de importações, durante o século 20, o alvo principal da política de Pinochet. Essa é a avaliação de Carlos Torres, assessor do Fórum Social Mundial.
“Nos centros industriais, existia o que podemos chamar de cultura proletária, que, no caso de Chile, Brasil e México, construiu-se através de quase um século de vida das pessoas em torno dos lugares de trabalho. Os trabalhadores viviam nos bairros distantes, industriais, seus filhos iam às mesmas escolas, suas mulheres estavam na mesma junta de vizinhos, sofriam os mesmos problemas, liam os mesmos jornais, jogavam nos mesmos times de futebol, tomavam cerveja nos mesmos bares, os religiosos iam à mesma igreja. A força do movimento sindical não estava somente nos sindicatos. Estava também, porque se sentia a exploração, mas eles a viviam diariamente e não só em relação à máquina, mas em todos os escalões da vida”, reflete.
Movimentações recentes
Os ataques aos trabalhadores permanecem. De acordo com o raciocínio de Torres, no Chile, eles não têm encontrado forças e soluções coletivas para uma reação. “As políticas neoliberais vêm justamente atacar o nó central da força e da organização popular, destruindo o que se havia construído, que era a cultura proletária, que se rompe com toda a sua força orgânica e de consciência, porque já não tem a força de enfrentar os problemas coletivamente. Aqui, tudo se dispersa. O que faz com que o trabalhador não chegue sequer a ler o boletim do sindicato”, reflete.
A taxa de sindicalização hoje no país está em torno de 11% da força de trabalho, o que dá à Central Unitaria de Trabajadores (CUT) pouca presença na agenda política do país.
Apesar da fragmentação e um longo período de descenso da luta de massas, movimentações recentes e à margem dos partidos institucionais despertam a atenção para a realidade chilena. Os povoadores da província de Magallanes, no sul do país, organizaram no começo deste ano a chamada Assembleia Cidadã contra a alta dos preços do gás – produzidos na própria região, centro energético chileno. Como resultado, mais de 200 presos políticos, repressão que também se manifesta contra a luta em defesa do território mapuche e de coletivos de esquerda da capital Santiago.
A gestão do direitista Sebastián Piñera – também ele individualista e refratário ao trabalho em equipe, de acordo com editorial do periódico Punto Final – equilibra-se entre a chance de promover um retorno ao Estado policial chileno – dos tempos de Pinochet – e a manutenção de políticas compensatórias, ao estilo neoliberal.
O governo, que recebeu recentemente a visita do presidente estadunidense Barack Obama ao Palacio de la Moneda, de onde Allende foi retirado morto, em 1973, volta-se para o campo de países que segue diretamente a política determinada por Washington. “Acentua-se a repressão. Há uma mudança no posicionamento latino-americano, e Piñera se alinha com o uribismo, com Alan García, do Peru”, informa Ernesto Pérez, militante da tevê comunitária Umbrales TV.
Enquanto isso, a conjuntura aponta para projetos de reforma educacional e da saúde. Esta última se daria por meio da implantação de um bônus à população mais pobre que transferiria o atendimento da saúde pública para o âmbito privado. Com ingressos mensais médios de 229 dólares, para uma jornada de 45 horas semanais, um trabalhador ainda deve pagar todos os serviços.
O economista José Manuel Flores, professor da Universidade de Santiago de Chile, agrega que, além de tudo, os impostos são mais um mecanismo de exploração da já endividada classe trabalhadora chilena. “Com os impostos, o trabalhador perde 60% do poder aquisitivo. São impostos que não se nota”, comenta.
Por fora da esquerda
Tudo se resume a um modelo hegemônico que, no Chile, há décadas não conhece contraposição. “Vivemos um momento político em que não há uma alternativa de modelo. Inclusive o Partido Comunista está dentro dele, buscando reformas não antagônicas, apoio dos setores do Partido Democrata-Cristão (PDC), alternativas de administração do modelo”, analisa Carlos Torres.
Na juventude, reside a esperança de confrontação ao projeto de reforma educacional. “Em 2006, houve uma manifestação dos famosos ‘pinguinos’ [pingüins], estudantes de ensino médio de 13, 14, até 16 anos. A reação em cadeia dos escolares evidenciou que o modelo de controle de dominação era ineficiente”, analisa José Manuel Flores.
A retomada de antigas tradições, como o baile cueca, que leva centenas de jovens de volta às praças da capital, é um pequeno sinal de que há uma movimentação popular à margem da lógica neoliberal e dos partidos engessados na formalidade – na qual a própria esquerda ainda apresenta pouca inserção.
Uma crise na oposição conformada pela Concertação e pelo Partido Comunista, que até o momento não deram resposta efetiva ao governo Piñera e à política da Alianza, pode ser substituída por ferramentas novas da classe trabalhadora? Na realidade, não parece haver elementos nesse sentido, de acordo com Ernesto Pérez, da Umbrales TV. “Duvidamos disso. A esquerda revolucionária vive uma crise profunda que não logra sair, há que ser franco com a verdade. Sabemos que o modelo de esquerda sectária está habitando um esquema do passado, assim como amadurece um movimento social por fora da esquerda”, descreve.
Para poucos
Em um país de 16 milhões de habitantes, 6,5 milhões de trabalhadores estão no mercado de trabalho formal, 800 mil na informalidade e 2,5 milhões de pessoas se situam na pobreza extrema, de acordo com dados citados pelo economista José Manuel Flores; dados não oficiais e/ou defasados, aponta.
As 6 mil grandes empresas controlam os mercados externo e interno e deixam uma fatia pequena deles às 27 mil médias e 51 mil pequenas empresas formais. Não há articulação entre esses ramos industriais, de acordo com Flores. “São grandes empresas que não criam sinergias com as médias e pequenas e contam com carga tributária reduzida”, diz. Nesse cenário, de acordo com o economista, os salários são rebaixados.
A pauta de exportações, formada pelo cobre e pelo salmão, entre outros itens, são apropriadas pelas transnacionais. Por absurdo que pareça, as águas do Pacífico para a pesca foram privatizadas. Suas donas são empresas concessionárias abertas ao capital financeiro, que já receberam do Estado chileno 450 milhões de dólares. Como resultado, a produção caiu, entre 1985 e 2002, de 1.200 para 331 toneladas, segundo a revista Punto Final.
Junto a esse cenário, 60% das fontes fluviais são controladas pela empresa Endesa, da Espanha. Estamos falando de uma das águas potáveis mais caras da América do Sul, de acordo com o periódico quinzenal El Ciudadano.
Igualmente à conjuntura que também atinge a economia brasileira, a desvalorização do dólar e o consequente fortalecimento do peso chileno reforçam na mídia local o discurso de necessidade de “adaptação trabalhista” e corte de direitos, argumentando que a força de trabalho estaria muito cara no país.