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Aline Scarso,
da Redação
O preso político Newton Leão Duarte conta no livro 68: a geração que queria mudar o mundo: relatos um fato extraordinário presenciado em 1970, quando estava encarcerado no Prédio de Investigações Criminais (PIC) do 1º Batalhão de Polícia do Exército, no Rio de Janeiro (RJ). Na ante sala da sua cela, pela primeira vez pode observar um preso enfrentando os torturadores, que o obrigavam a tirar a roupa para iniciar a sessão de abusos.
Começou-se uma luta corporal e aos gritos o tenente inquisitor chamava os cabos de guarda para ajudá-lo. “Com a chegada dos reforços, o recalcitrante, que insistia em não se submeter ao capricho dos carrascos, foi dominado e fez-se silêncio”. Depois disso, Duarte diz que pode observar o preso lutador: “Vi um homem de meia idade, deitado com a barriga para baixo, as mãos e pés amarrados às costas, o corpo marcado pelos sinais da luta, maltrapilho, porém, vitorioso porque vestido!”, conta.
Com as mãos e pés amarrados às costas, o guerreiro permaneceu diversos dias. Somente tempos depois, Duarte descobriu que o homem sereno, firme e seguro, que por todo o tempo em que esteve preso no PIC se manteve altivo, se recusando a gemer e a gritar de dor e a delatar os companheiros, era Apolônio de Carvalho, na época com 58 anos.
O sulmatogrossense de Corumbá é um dos militantes comunistas brasileiros mais conhecidos. Morto em 23 de setembro de 2005, o revolucionário completaria 100 anos no dia 12 de fevereiro. “Ele sempre foi um homem seguro de suas posições e muito consequente”, afirma Renée de Carvalho, militante comunista e companheira por 62 anos de Apolônio, com o qual teve os filhos René e Raul.
No último dia 09, Renée doou ao Arquivo Nacional fotos e documentos que remontam à militância do comunista no Brasil e na Europa. Nem tudo pode ser doado, entretanto. Parte de seus registros teve que ser obrigatoriamente perdida durante os anos de clandestinidade da ditadura civil-militar (1964-1985) para evitar que camaradas próximos a ele caíssem nas mãos dos militares e sofressem com a tortura e o risco de morte.
“Já nos anos 20 do século passado, sentíamos o protesto do povo contra as arbitrariedades dos governantes, o desprezo pelas reivindicações [sociais] e os desejos do povo. Iniciei a minha prática social antes da prática política, através dos movimentos sociais que pregavam a luta pela democracia, pelas liberdades e pela soberania nacional”, conta Apolônio em entrevista concedida um mês antes de falecer ao site do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.
Em 1935, já como oficial do Exército brasileiro e com 23 anos, o lutador combateu a influência do fascismo no governo de Getúlio Vargas. Esteve ao lado de democratas, operários e intelectuais nacionalistas da Ação Nacional Libertadora (ANL) e por causa da aproximação com a organização, acabou preso e expulso da Corporação.
Partidão
Na cadeia, ficou por dois anos, revezando-se entre a Casa de Detenção e a Casa de Correção no Rio de Janeiro (RJ). Foi nessa época que entrou em contato com dirigentes do Partido Comunista Brasileiro. Em junho de 1937, foi posto em liberdade e entrou para o PCB.
Em entrevista à revista Teoria e Debate, Apolônio assim exprime o ideário do Partido: “era muito parecido com o da ANL: contra os monopólios estrangeiros, pela reforma agrária, pela autonomia sindical, pelas liberdades sindicais, pelas amplas conquistas sociais”. E nele permaneceu até 1967.
Como militante e militar de profissão, ainda em 1937 ele seguiu para a Espanha, acompanhado de outros 20 brasileiros que auxiliaram as forças republicanas no combate ao governo fascista do general Francisco Franco. “Ele lutou na Espanha até a derrota da República. Então foi encaminhado pelo governo espanhol para a França, onde deveria ser recebido de uma forma humanitária”, conta Renée.
O que aguardava na fronteira dos Pirineus, entretanto, era um campo de refugiados que, segundo a esposa, lembrava mais um campo de concentração. “Era um pedaço de praia cercado por arame farpado. Não havia um lugar onde podiam se abrigar. Mandavam o pessoal fazer buracos na areia e ficarem nesse buraco para não sentirem tanto o ar frio que vinha do mar”, lembra a companheira. Até maio de 1940, Apolônio permaneceu nesses campos. Depois disso, conseguiu fugir.
Contra o nazismo
Apolônio partiu para cidade francesa Marselha, onde precisou encontrar um meio para sobreviver. Apresentou-se no Consulado Brasileiro para prestar serviços e lá contribuía, entre outras coisas, tentando tirar os companheiros dos campos de concentração. Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra, entretanto, Apolônio teve que fugir mais uma vez. “Metade da França estava sendo ocupada pelos alemães literalmente. A outra metade, digamos sul da França, estava com o governo francês. Quando o Consulado foi fechado, ele entrou de uma maneira mais ativa na resistência e se integrou mais completamente na luta armada contra o nazismo”, conta Renée.
O objetivo era expulsar os alemães do território francês e impedir o avanço do nazismo. Por sua coragem e empenho como comandante da guerrilha na região sul, o militante foi condecorado com a Legião de Honra do governo francês. Foi nesse período, mais precisamente em 1942, que conheceu Renée, então com 18 anos e também integrante da frente de resistência contra os nazis.
O casal viveu por várias vezes de forma clandestina. Em 1946, eles chegaram ao Brasil e passaram a viver na clandestinidade entre o Rio de Janeiro e São Paulo até 1953, quando Apolônio partiu para a União Soviética. Viver com documentos falsos e disciplina extremamente rígida era uma das condições impostas pela dupla identidade, conta a companheira. “Não era fácil. Terminada uma operação, cada um voltava para o seu cantinho, que em geral não sabíamos onde ficava. Mas a gente sempre tinha vontade de se encontrar, bater um papo, etc, então essa disciplina era um pouco violada. Ninguém é de ferro”, ri Renée.
Rompimento com o PCB
Com as revelações feitas por Nikita Kruschev, durante o vigésimo congresso do Partido Comunista na URSS em 1956, parte dos militantes comunistas ao redor do mundo começavam a se dar conta da restrição das liberdades democráticas nas Repúblicas Soviéticas e das perseguições políticas e repressão aos opositores de esquerda cometidos pelo regime de Josef Stálin. Os comunistas reconheciam que os propósitos do início da revolução de outubro de 1917 não foram alcançados e que o regime se tornou essencialmente policialesco e controlado.
Também no Brasil, parte dos militantes do PCB passavam a divergir das linhas tiradas pela direção brasileira. “Começou assim uma série de descréditos, as pessoas começaram então a abrir os olhos e a ter pensamentos mais independentes”, conta Renée.
Para Apolônio, a maior crise com a direção do PCB ocorreu uma década mais tarde, em 1967, em função do posicionamento do Partido em relação ao golpe militar. Renée explica: “Para muitos comunistas pareceu que a direção do PC não tomava a atitude que deveria ser tomada. Veio o golpe em 1964 e a gente poderia ter tentado fazer alguma coisa para não deixar que ele se instalasse aqui. Mas a direção do PCB não tinha uma política que levasse à resistência”.
Foi então que Apolônio rompeu com o PCB para fundar, ao lado dos colegas Mário Alves e Jacob Gorender, o PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário). O militante acabou preso em 1970 e torturado. Os filhos René e Raul também foram encarcerados. Renée trabalhava durante a semana, e aos finais de semana, quando eram liberada as visitas, chegava a ir até em quatro prisões. Chamava a isso de rotina do desespero.
Exílio e redemocratização
Apolônio foi um 39 presos políticos trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben e, depois disso, ficou exilado em Argel, na Argélia. Só conseguiu voltar ao Brasil em 1979, quando os militares afrouxaram o regime aceitaram a Lei da Anistia.
Renée conta que ao voltar para o país, Apolônio ficou muito animado com as greves operárias que ocorriam nas fábricas do ABC, na região metropolitana de São Paulo. Essa motivação levou o militante a contribuir para a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, sendo o primeiro nome a ser filiado. Apolônio acreditava que a revolução socialista seria feita em fases, e que cada fase significaria um avanço mais profundo na consciência do povo.
“As conquistas democráticas, populares, trouxeram a presença constante do povo na arena política, a visão clara por faixas cada vez mais amplas do povo das necessidades da nossa sociedade, dos seus flancos mais atrasados com seu desejo de ganhar o direito de sonhar e de viver. Tudo isso representa os avanços constantes dos regimes de democracia. Através de suas etapas, nós nos aproximamos da forma mais humana e ampla de democracia que é o socialismo, que vai abranger com maior vigor e maior amplitude as faixas abandonadas e desprezadas da população, colocadas fora da ordem das preocupações das classes dominantes”, discorreu Apolônio ao MST.
Ele também valorizava a formação política – tanto aquela que os Partidos deveriam realizar com seus militantes quanto a que os comunistas deveriam levar ao povo. Somente dessa forma, considerava, era possível livrar os trabalhadores da falta de educação, da pressão e da miséria impostas pela classe dominante.
A militância permaneceu até a morte, em 2005, período em que o combatente ficou decepcionado diante das denúncias do escândalo conhecido como mensalão, que revelaram um esquema de compra de votos de parlamentares. “É claro que dentro do PT as pessoas tiveram suas fases, mais felizes ou menos. Com esses escândalos, as pessoas ficaram desgostosas. Mas mesmo assim, ele sempre se sentia como o primeiro filiado do partido”, conta Renée.
Segundo ela, o companheiro nunca almejou nenhum cargo na esfera legislativa e sempre foi um grande humanista. “Um homem que gostava dos outros, que gostava da vida, ele sempre foi um revolucionário muito otimista”.
“Quem passa pela vida e não tem nenhum horizonte definido, nenhum ideal que possa e queira lutar, está sujeito à mediocridade”, disse Apolônio no documentário Vale a pena sonhar, dos diretores Rudi Böhm e Stela Grisotti e inspirado no livro autobiográfico do militante comunista.