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Angustiado pela dureza do trabalho como capanga de um grupo de narcotraficantes no norte do México, que envolve a necessidade constante de executar adversários e traidores, o protagonista do filme El Infierno desabafa com um companheiro, a certa altura: “Não te dá medo de ir para o inferno?” “Inferno? O inferno é aqui”, ele responde. O cinismo e o humor ácido do filme de Luis Estrada não são unanimidade, mas renderam um razoável sucesso de bilheteria em plena celebração do bicentenário da independência mexicana, em setembro. Um reflexo, certamente, do atual estado de espírito do país. O patriotismo popular continua forte, mas o clima geral é de desesperança e desânimo.
Ao lado dos tradicionais enfeites com as cores da bandeira nacional, não é difícil encontrar camisetas com a frase: “200 anos: nada a comemorar”. No dizer do historiador Lorenzo Meyer, um dos mais reconhecidos analistas políticos do país, em recente conferência, depois de duas décadas de implantação do projeto neoliberal no país, a partir do governo de Carlos Salinas (1988-1994), o México está completamente perdido. “Não tenho nem ideia de para onde vamos.”
No fim de agosto, a imprensa mundial destacou a notícia sobre uma matança de proporções espantosas: foram encontrados 72 corpos de imigrantes que atravessavam o país rumo à sonhada fronteira com os Estados Unidos, na região de Tamaulipas, ao norte. Pelo menos quatro corpos identificados até agora eram de brasileiros. O único sobrevivente do massacre, um equatoriano, relatou que os narcotraficantes executaram o grupo após se recusarem a prestar serviços. O episódio reflete o grau de violência atingido pelos cartéis de narcotraficantes. Uma violência amplificada pelo sensacionalismo da mídia. As bancas de jornais estão repletas de cenas de corpos esquartejados, queimados ou dilacerados por tiros de alto calibre, com sangue escorrendo. Nos últimos quatro anos, calcula-se que a “guerra ao narcotráfico” já fez mais 30 mil vítimas. A agressividade do conflito não poupa autoridades (foram mais de 100 ataques a prefeitos nos últimos anos, e 12 assassinatos só este ano) nem jornalistas (64 mortos desde 2000).
A secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, declarou recentemente que a situação mexicana se aproxima da que se via na Colômbia 20 anos atrás e que os narcotraficantes representam, hoje, uma espécie de “insurgência”. Foi prontamente desautorizada pelo presidente Barack Obama, mas acabou evidenciando, uma vez mais, a indisfarçável sanha americana em inventar inimigos, mundo afora, para prontamente oferecer os préstimos de suas forças armadas e de sua indústria bélica.
Divulgação/México
Desastre armado
Contando com a assistência americana, por meio da chamada Iniciativa Mérida, desde 2007, as Forças Armadas mexicanas se converteram em força policial para combater os narcos. Hoje são mais de 45 mil homens patrulhando o país. Ainda que esse combate não dê sinais de avanço, ao menos no plano político teve sucesso. Felipe Calderón, do Partido da Ação Nacional (PAN) – o mesmo de seu antecessor, Vicente Fox –, então recém-eleito após um episódio de fraude eleitoral descarada contra André Manuel Lopez Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD), hoje ostenta razoáveis índices de popularidade. Os intensos protestos populares que se seguiram à eleição, levando milhões de pessoas às ruas, acabaram por arrefecer.
“É um desastre. A presença das tropas nas ruas é uma das maiores causas do grave aumento das violações aos direitos humanos e da violência no país”, destaca Laura Carlsen , socióloga norte-americana do Centro de Relações Internacionais, na Cidade do México. “As elites é que ganham muito poder com esse processo. Estão desfazendo o tecido social. Quando se tem uma cidade como Ciudad Juarez (no norte do país), que está tão militarizada, um caos total, tudo o que unia as pessoas, como a confiança, as organizações, começa a se desfazer. As pessoas já não controlam os fios de suas vidas”, diz a estudiosa, que antes da Iniciativa Mérida pesquisou os efeitos do Plano Colômbia, modelo para a ação no México.
Ela destaca que os Estados Unidos já investiram na iniciativa US$ 1,8 bilhão desde 2008 e que o plano atendeu às próprias diretrizes americanas de segurança interna, a partir da ideia de “estender fronteiras” que o governo Bush estabeleceu como forma de melhor combater a ameaça terrorista. A questão é que o grande incentivo para o tráfico no México é a gigantesca demanda americana, que não é alvo dessas políticas.
Mas se a política é obviamente ineficiente, que interesses a sustentam? “A militarização caminha de mãos dadas com o aprofundamento das políticas neoliberais e, sobretudo, da transnacionalização dos recursos naturais”, responde Laura. “Há casos em que entram em comunidades dizendo que estão buscando drogas, mas na verdade a presença militar lá está facilitando a instalação de projetos mineiros, como na Sierra Madre, ou a instalação de projetos de plantações, ou de uso do solo, tirando o controle das terras dos camponeses e passando-os às empresas transnacionais.”
“Desde a época em que o presidente Nixon declarou guerra às drogas, nos anos 70, foram 14 milhões de prisões relacionadas à droga nos EUA. Ainda assim, hoje elas são mais populares, mais acessíveis”, critica a socióloga. “O que se precisava fazer era agir com maior rigor sobre a base econômica dos cartéis. Falamos entre US$ 19 bilhões e US$ 39 bilhões anuais. Atacar esse modelo econômico não se faz por meio de violência ou militarização.”
Para Laura, o momento é de “alerta vermelho”. “Se conseguirem impor esse modelo aqui no México de guerra contra o narcotráfico que militariza a sociedade de uma maneira em que não há apenas a participação, mas a direção do Pentágono, rapidamente esse modelo vai se expandir pela América Central e pode chegar a gerar um choque com os países de centro-esquerda, como Brasil, Venezuela, Equador, Bolívia”, prevê.
Caos e business
Outro aspecto oculto sob a chacina de Tamaulipas é o caos social a que estão submetidos os trabalhadores mexicanos com os rumos econômicos que o país tem tomado. Ponta de um gigantesco iceberg de corrupção, violência e descaso, o episódio refletiu a situação de extrema fragilidade social dos milhares de trabalhadores que atravessam o país rumo aos Estados Unidos. Eles partem de comunidades camponesas e indígenas do México, dos pequenos países centro-americanos, como Guatemala, Honduras e El Salvador, afetados por políticas de ajustes macroeconômicos e abertura comercial impostas pelos braços financeiros do neoliberalismo, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
As ruas da capital mexicana estão repletas de anúncios de empregos, principalmente no setor de serviços. Mas os salários são baixos demais. Empresas privatizadas contratam terceirizadas, que por sua vez oferecem empregos sem nenhuma proteção social. “Essa via neoliberal atua sob um conjunto de vias, como privatizações, livre comércio, terceirização, flexibilização trabalhista. Todas são componentes de uma estratégia que busca deixar o capital em maior liberdade para que mova seus interesses à custa dos trabalhadores”, analisa Hector De la Cueva, coordenador-geral do Centro de Investigação Laboral e Assessoria Sindical (Cilas).
As maquiladoras – empresas que realizam a montagem de produtos a partir de componentes importados, para re-exportar o resultado a baixíssimo custo –, continuam empregando 1,2 milhão de pessoas, principalmente na fronteira com os Estados Unidos, segundo dados do Cilas. “É uma dessas ficções desse modelo. Estatisticamente, aparece como desenvolvimento do país, mas não é”, diz De la Cueva. Para ele, o modelo de livre comércio é uma espécie de “chantagem transnacional” contra os trabalhadores. “Aos trabalhadores do norte do México dizem que, se não aceitarem rebaixar suas condições de trabalho ou manter suas condições miseráveis de vida e de trabalho, seus empregos irão para o sul, a Honduras, ou à China. O mesmo dizem aos trabalhadores do sul. É uma chantagem que vai de ponta a ponta, dizendo que sempre há outro país onde se pode produzir o mesmo com menos.”
O México é, hoje, um dos países com o maior número de tratados de livre comércio no mundo, segundo o Cilas. Mas os problemas vão mais longe: nos anos 1990 o país chegou a flexibilizar suas leis com o objetivo de favorecer a adoção do modelo. “Essa abertura comercial indiscriminada fez crescer a dependência e a subordinação do México. O país perdeu soberania em todos os terrenos: energético, alimentar, nacional”, analisa De la Cueva. O resultado, além de uma queda geral na qualidade dos empregos e na média salarial e de um processo de êxodo rural e desindustrialização do país, foi um boom na emigração, principalmente para os Estados Unidos – quase 500 mil pessoas ao ano, na década de 90.
As privatizações também deixaram um rastro de destruição. O Cilas calcula que 95% das empresas estatais foram vendidas – gerando fortunas, como a de Carlos Slim, hoje um dos homens mais ricos do mundo –, mas alerta que o processo continua em curso, por intermédio de progressivas aberturas à participação da iniciativa privada em setores estratégicos, numa privatização silenciosa: “Setores como energia elétrica, petróleo, educação pública, patrimônio cultural, saúde, seguridade social e recursos naturais, como a água, há anos estão sendo preparados aos poucos. Fazem uma campanha sobre a ineficiência das empresas até convencer a opinião pública de que não há outra saída a não ser entregá-las”.
No fim das contas, tudo se encaixa, conclui De la Cueva. “O clima de insegurança que existe no país evidentemente não pode ser terminado com uma guerra, mas mudando o modelo neoliberal. Só que o governo utiliza essa guerra contra o narcotráfico para militarizar o país, para recortar direitos, para aterrorizar a população e evitar que haja uma expressão de descontentamento. É um círculo que se fecha dessa maneira.”
Nas ruas
Nas ruas do centro da capital mexicana se constata gravado no cotidiano de uma família de vendedores informais o efeito direto de duas décadas de políticas liberais. Miguel Salazar Vargas, 50 anos, nascido na zona rural do estado de Hidalgo, conta que trabalha desde 1981 no mesmo cruzamento vendendo doces. Seus seis filhos o apoiam, trabalhando como limpadores de para-brisas. Além deles, trabalham nessa área uma cunhada e um primo de Miguel. Os Salazar Vargas vivem no bairro de Istapalapa e, diariamente, enfrentam cerca de duas horas de transporte público até chegar ao local de trabalho.
Antes, Miguel trabalhava em uma empresa de marcenaria, mas certa vez, ao voltar das férias, foi demitido. Ele conta que a situação só piorou nos últimos anos. “Antes éramos 30 aqui nesse ponto de venda. Alguns morreram atropelados e outros, com a crise, foram tentar a vida nos Estados Unidos. Hoje estamos em cinco vendedores e dez limpadores de para-brisas.” Ainda que a situação tenha piorado, Miguel afirma que ainda é mais vantajosa que trabalhar em troca de um salário mínimo. Ele fatura 5 mil pesos por mês (cerca de R$ 650), enquanto o salário mínimo do país é de menos de R$ 200.
Os efeitos da falta de oportunidades se estendem também pela parte rural da família: “Da minha família que vive em um povoado em Hidalgo, já foram para os Estados Unidos cinco primos e 15 sobrinhos. Em 1996 migrou para lá o primeiro ente da minha família. O mais recente foi há seis meses. Esse já tinha ido para os Estados Unidos, voltou por causa da crise e agora vai tentar a vida novamente por lá. Eles apoiam suas famílias, mas têm de viver como ratos”.
A informalidade no México abrange cerca de 12,8 milhões de pessoas, ou 28,8% dos 44,6 milhões de trabalhadores ocupados, segundo dados oficiais recentes – sem falar em 13,7 milhões que não têm previdência social, um igual número de pessoas sem contratos de trabalho assinado, 10 milhões de trabalhadores autônomos, 4 milhões de subempregados, 3 milhões que não têm renda e, finalmente, 2,5 milhões de desempregados. É quase metade da população abaixo da linha de pobreza. Com a recente crise mundial, o PIB no país caiu 6,5%, depois de dois anos em que a economia patinava, com crescimentos de 1,5% em 2008 e de 3,3% em 2007. Para um país que é um dos dez maiores produtores de petróleo do mundo, um resultado vexatório. O processo de subordinação à economia americana é tão grave que as remessas dos quase 30 milhões de mexicanos e seus descendentes que vivem no vizinho de cima já são a segunda maior fonte de ingresso de capital no país (mais de US$ 20 bilhões anuais).
Apesar de abrigar na atualidade expressões mundialmente famosas da luta social, como o zapatismo, e diversos movimentos indígenas e camponeses, o campo popular no México não foi capaz de derrotar o projeto elitista do neoliberalismo. “As resistências ao sistema são regionais. Não se consegue articular nacionalmente um movimento capaz de conquistar o poder”, diz o analista político Luis Hernandez, do diário La Jornada. Ele explica que Lopez Obrador, vítima de fraude em 2006, mantém um grande número de seguidores pelo país, mas não controla a direção de seu partido, o PRD, que vem adotando alianças com o governista PAN. Há fortes críticas de seu principal pré-candidato às eleições de 2012 – enquanto as pesquisas preliminares dão a liderança das preferências populares ao velho PRI, que governou o país de 1928 a 2000, quando foi derrotado pelo também conservador PAN.
Mesmo assim, ainda que Lopez Obrador, considerado o candidato mais à esquerda entre os que se apresentam atualmente (o “Chávez mexicano”, para alguns), conseguisse driblar as dificuldades e, hipoteticamente, se elegesse, Hernandez não crê que ocorreriam guinadas radicais. E recorda os discursos do candidato em 2006: “Ele dizia que o neoliberalismo era um ouriço ao qual se tinha de lixar os espinhos mais afiados. Mas ele não ia além disso, nem rompeu, nem enfrentou os Estados Unidos”.
Hernandez afirma que, tanto pelo papel importante que as remessas têm hoje para as classes populares como pela opção que as elites fizeram de uma integração subordinada aos Estados Unidos, o país hoje está amarrado: “É por um lado um problema de visão, mas é também um problema de correlação de forças. O México passou muitos anos olhando para o norte, em vez de olhar para o sul”. E conclui: “Com exagero, diria que caminhamos para nos tornar um novo Porto Rico”, em referência ao país que tem status de “Estado associado” aos Estados Unidos desde fins do século 19.