Compartilhe
A equipe da SSTV reunida: o grande desafi o foi começar
a produzir programas praticamente do zero – Foto: Reprodução
Felipe Canova e Sílvia Alvarez,
de Manágua (Nicarágua)
A revolução nicaraguense é mais um exemplo de que um processo revolucionário não se resume à chegada ao poder. Passado o período da guerra para derrubar a ditadura dos Somoza, era preciso construir uma nova sociedade, baseada em novos sistemas de saúde, educação, justiça, entre outros. Da tentativa de criar um novo modelo de comunicação, nasceu o Sistema Sandinista de Televisão (SSTV), que esteve no ar durante toda a década de 1980, fruto de uma rebelião popular vitoriosa.
Entre bens e negócios – que iam de fazendas de gado e plantações de café a uma empresa de aviação – estavam os canais de televisão 6 e 8. Logo, por pressão popular, a revolução confiscou bens de outras famílias da oligarquia que tradicionalmente apoiaram o somozismo, dentre elas, a família Sacasa, dona do Banco Nicaraguense e dos canais de TV 2 e 12.
O passo inicial para a construção do sistema foi a expropriação dos benspertencentes à família Somoza – que se manteve no poder de forma ditatorial durante 43 anos – com a promulgação do chamado Decreto 3, em 20 de julho de 1979, logo no segundo dia de governo sandinista.
Esses quatro canais, que formaram então o Sistema Sandinista de Televisão, operavam antes da revolução sob uma mesma linha editorial, atrelada aos interesses da oligarquia nacional. Iván García, diretor do SSTV durante toda sua duração, conta que praticamente toda a programação das emissoras antes do Sistema Sandinista era de “enlatados” provenientes dos EUA e do México, e o que havia de programação nacional era propaganda política e ideológica do governo.
Democratizando a TV
Fazer televisão começando praticamente do zero, com um caráter de criação, foi um desafio para os sandinistas. Para Iván, “a revolução gerou uma criatividade que contribuiu para que na TV ela se refletisse em novos valores culturais, musicais, econômicos, ou mesmo de concepções sobre a vida, resultado do que a mesma revolução estava produzindo”. Ele relembra que, naquela época, “se começou a pensar na televisão nicaraguense, em fazer programas de acordo com a realidade nicaraguense, com os interesses nicaragüenses e não somente transmitir produtos estrangeiros”.
Ampliar o sinal da televisão, que antes da revolução chegava apenas à povoada costa do Pacífico, onde se situam as principais cidades do país, foi uma das primeiras iniciativas. Regiões como o centro do país, de território montanhoso, e a costa atlântica receberam sinal de televisão pela primeira vez. E, para além de uma transmissão mais potente, o SSTV buscou criar, em vários aspectos, as condições de operar dentro de um novo conceito de televisão.
Documentarista da TV Sandinista em frente de guerra – Foto: Reprodução |
“Eu estava no quarto ano da faculdade de letras e chegou o pessoal do Sistema Sandinista pedindo os melhores estudantes”, relembra, orgulhosa, a roteirista Luz Marina Umaña. “Assim, entrei no mundo da televisão, para integrar uma nova equipe de roteiristas de documentários”. Formar seu próprio pessoal era a prioridade do SSTV, que ampliou o número de trabalhadores em televisão de 110 para mais de 600 depois da estatização dos canais.
Novelas brasileiras
Foram inúmeras as parcerias com outras televisões e institutos de cinema, de países do campo socialista e outros como México, França e Espanha. Além de contar com os que estudavam fora do país, o Sistema Sandinista criou seu próprio centro de formação em Manágua e atuou em conjunto com as várias brigadas culturais que produziam música, teatro, dança e artes plásticas no dia a dia da revolução.
Construir uma programação com foco na identidade nacional e revolucionária era uma tarefa complexa. Foi necessário elaborar uma política de transição para atingir outro patamar, pois o Sistema Sandinista não poderia desconsiderar anos de condicionamento dos telespectadores em uma televisão que vivia de reproduzir “enlatados”.
Um exemplo de reação dos espectadores ocorreu quando o SSTV, logo no início de sua atuação, decidiu tirar do ar as telenovelas mexicanas.
Declaração sandinista – Foto: Reprodução |
“O pessoal sentiu muita falta”, recorda Iván García. “Então, tivemos que pensar que tipo de novelas poderíamos usar que tivessem algum conteúdo. Então, buscamos as brasileiras, que ainda que tenham conceitos ideológicos de direita – sabemos o que é a Globo –, pelo menos apresentam uma problemática interessante e trabalham melhor a forma do que as mexicanas”.
Espaços educativos e culturais dentro da grade eram priorizados, especialmente com o surgimento de programação própria para a infância e juventude, como o papagaio Chocoyito Chimbarón, Liga del Saber, El Pollito Intelectual, entre outros. Documentários sobre diversas regiões pouco conhecidas do país, suas manifestações culturais e expressões do cotidiano da revolução tiveram espaço pela primeira vez na televisão. Isso incluiu o trabalho dos correspondentes de guerra do SSTV, que documentavam os embates com os “contras”, iniciados em 1982.
Guerra militar e ideológica
Ao completar 16 anos, Mario Delgadillo teve que abandonar o já famoso personagem infantil Chocoyito Chimbarón para ir ao serviço militar. Depois dele, um menino e uma menina interpretaram o papel do papagaio. “A que mais desfrutou foi a menina, já que ela não precisou ir à guerra. Nessas altura, o personagem fazia parte do imaginário coletivo e era requisitado em muitos lugares. Ela viajou até para fora, foi a países socialistas, enquanto nós sofríamos na montanha”, relata Delgadillo, em tom de brincadeira.
Apesar do triunfo da revolução, os anos de 1980 não foram tempos fáceis para os homens e mulheres nicaraguenses. As forças contrarrevolucionárias, financiadas pelos EUA, atacavam não só militarmente, como travavam uma luta ideológica. As televisões de Honduras, Costa Rica e El Salvador, onde atuavam os “contras”, colocaram suas retransmissoras perto das fronteiras com Nicarágua, a fim de concorrer com o Sistema Sandinista de Televisão (o mesmo aconteceu com as rádios). Além disso, as antenas de transmissão sofriam eventuais ataques às suas estruturas.
Luz Marina lembra bem dessa época. Segundo ela, havia uma dupla função dos trabalhadores da comunicação, que, além de exercer o ofício nos meios, buscavam como defendê-los. Combinávamos a formação com o treinamento militar e com o trabalho. Era bem bonito”, relata a roteirista. “Não gostaria de voltar a viver essa época, porque a angústia da guerra não é fácil. Mas era uma época bonita, recebíamos uma formação integral. Aprendi a amar minha terra, a respeitá-la e defendê-la” relata.
Derrota e resgate
Com a derrota eleitoral da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) em 1990 e os posteriores 16 anos de governos neoliberais, essa nova concepção estética e política de um sistema de televisão desintegrou-se. A maioria dos funcionários foi demitida imediatamente após a derrota, permanecendo apenas alguns funcionários de perfil mais técnico. Os canais 2 e 12 voltaram à propriedade dos Sacasa e as instalações do canal 6 ficaram abandonadas, passando a funcionar somente como uma retransmissora.
“Desgraçadamente, quando estávamos no clímax da nossa capacidade de produção, aos dez anos de atividades – imagina o que pudemos acumular em dez anos, éramos seiscentos e poucos trabalhadores formados, com experiência –, veio a derrota eleitoral. E o que aconteceu com todo esse pessoal? Perdeu-se”, lembra Iván García, que hoje se dedica à fotografia e a trabalhos com publicidade.
“Se tivéssemos continuado até hoje, teríamos alcançado um tal nível qualitativoque poderíamos estar exportando programação” palpita Mario Delgadillo. “Não tivemos tempo nem de nos despedir, muitos de nós passamos mais de 20 anos sem nos ver”, lamenta.
Carteirinha SSTV – Foto: Reprodução |
Foi através das redes sociais que muitos trabalhadores reencontraram-se e começaram a resgatar a produção da televisão sandinista. Através da página no Facebook “Pioneros de la TV Nicaraguense”, juntaram fotos, vídeos e informações dessa experiência tão pouco resgatada e sistematizada pela própria Frente Sandinista de Libertação Nacional. Ali e em alguns encontros presenciais, reivindicaram a memória e o reconhecimento da televisão para a qual entregaram sua juventude.
No início de setembro, a gestão de Daniel Ortega – que regressou ao poder em 2007 e é candidato à reeleição – anunciou a reabertura e recuperação do canal 6, sob responsabilidade e direção do Estado. Ainda não há muitas informações a respeito da programação do canal.