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Jefferson Pinheiro,
do Coletivo Catarse
Um filme de estrada, sobre um país que se despedaça. Com um carro emprestado, um casal de jovens (ele estadunidense, ela brasileira) percorreu 17 mil quilômetros pelos Estados Unidos, em duas viagens. A primeira, quando estourou a crise de 2008. A segunda, um ano após a eleição de Obama. Os dois se jogaram nas ruas para ouvir o que na rua estavam sentindo, pensando, dizendo e fazendo. Um filme de depoimentos impactantes de gente do povo. Com a palavra: latinos, negros, brancos pobres e indígenas. Um registro documental contundente que desmancha a ideia que temos (ou tínhamos) do país considerado a maior potência mundial. Um lugar que está se quebrando, onde a parte mais vulnerável da sociedade tenta juntar seus cacos. “Somos a cidade mais segregada, com a taxa de crimes mais alta. Detroit é o que é por causa da indústria, do capitalismo e da democracia. Somos o fracasso de tudo isto. É o que nos resta”, lamenta o jovem negro Jon Blount, no começo do filme, sob uma cidade desolada.
Cruzando as crises norte-americanas é uma colagem de rostos, falas, lugares e situações que dão uma ideia do panorama geral. Sob a aparente segurança da economia mais forte, o caos vai entrando na vida de muita gente. Na tela, a animação gráfica percorre o trajeto no mapa que os diretores fazem nas ruas. De Rosebud a Denver e, depois, a Salt Lake City. E, assim, o território vai sendo visitado, mostrado, escutado, auscultado. Se fundem o olhar de Mike, de dentro, com o olhar de Silvia, de fora.
O documentário também foi dividido em duas partes que se completam. Na primeira, Colapso, a pior crise financeira dos Estados Unidos desde a Grande Depressão é apresentada nas notícias das TVs, jornais e rádios que escancaram o caos e se misturam com as imagens da estrada, pulando de cidade em cidade, estado em estado. Muitas vezes, da janela do carro os olhos da câmera captam paisagens áridas, degradadas, desertas, fantasmagóricas. A crise é ouvida nas falas de desilusão e desesperança, de quem perdeu o trabalho e a crença nos governos.
Na segunda parte, Ação, acompanha o que associações, Ongs, cooperativas e pessoas estão tentando reconstruir, conquistar através de mobilizações, passeatas, manifestações, greves, embates, articulações. É nesta parte que a luta da população vai sendo apresentada pelo que assegura a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas que não é cumprido: não há saúde, educação, moradia e vida com dignidade para todas, para todos. Cruzando as crises é, essencialmente, um documentário sobre pessoas. E elas estão o tempo todo se sucedendo na tela: trabalhadores, ativistas, desempregados, estudantes, moradores de rua, sindicalistas, professores.
Até onde se pode confundir um governo com seu povo, tanto lá quanto em qualquer lugar? Parece que os estadunidenses estão descobrindo na própria carne, parte da dor que sua pátria já distribuiu em tantas outras geografias. “Não temos uma cultura social, temos uma cultura econômica, que não é sustentável. Talvez, todo este país esteja bêbado, e estamos começando a acordar com as conseqüências. Se a economia entrar em colapso, quem sabe vamos descobrir o valor das relações humanas”, reflete Michael Combs, um senhor de barbas brancas e chapéu furado, cantor de rua, escorado na parede de uma calçada em Santa Fé, Novo México. Antes de tudo, o filme é sobre esta crise de valores alienante, acachapante, que agora sacode os cidadãos. Como em Baltimore, onde trabalhadores mobilizados estão tentando criar uma “zona de direitos humanos”, onde finalmente estes sejam respeitados.
Parece contraditório que o país imperialista, que há décadas liderava sozinho a economia mundial, deixe seus próprios filhos na mão? Não é. Michael Moore nos seus filmes já revelou estas contradições e injustiças, mostrando o quão ridícula é, muitas vezes, sua sociedade e perverso seu sistema econômico, a lógica desse mercado selvagem que move o Estado yankee em declínio.
Agora, que muitas mentiras que alienaram quase uma sociedade inteira desmoronam, vem este golpe na autoestima, na arrogância e na onipotência. Gente que se diz cansada de ser tratada como lixo. Mas refletem os norte-americanos à custa da opressão de quem e em quais lugares conseguiram viver durante tanto tempo em altos níveis econômicos? Para isso não há perguntas nem respostas claras no filme. No entanto, para recuperar sua condição econômica, os mais pobres não miram outras riquezas que não as do próprio país: 10% da população é dona de 70% da riqueza total. Reivindicam redistribuir.
Incluindo-se nos excluídos
Mesmo que não chegue a ser didático, é um fi lme informativo, militante. Um grito de parte dos estadunidenses se incluindo entre os excluídos do mundo. São 43 milhões de pobres e 47 milhões sem seguro médico, que provavelmente não receberão atendimento se adoecerem. Desde o início da crise, em 2008, oito milhões de pessoas já perderam suas casas, por conta das hipotecas. Atualmente, apenas 53% das crianças negras terminam a escola. Na Califórnia, nos últimos 20 anos foram abertas 24 novas prisões e apenas uma universidade. É uma fábrica de prisões privadas, que serve para ganhar dinheiro com as pessoas que o próprio sistema exclui. Um em cada nove negros está preso nos Estados Unidos. No estado de Nova Iorque, dos encarcerados em seus 70 presídios, 80% são negros e latinos. “Enquanto estão resgatando as instituições financeiras, seguem encerrando comunidades pobres e negras em celas exóticas.
Exigimos liberdade para respirar!”, se impõe uma garota num parque em Oakland, enquanto alguns estudos falam na volta da escravidão.
“Resgataram os bancos! E nos venderam!”, denunciam os cartazes numa manifestação. “Não podem usar nosso dinheiro para nos oprimir”, alguém fala ao microfone. Passadas a euforia e a esperança no governo de Obama, a população tem a sensação de “mais do mesmo”. Para o casal que dirigiu o filme, a classe trabalhadora, os pobres e as minorias estão piores do que nunca e a indignação diante da crise econômica desastrosa é resultado de um caos gerado por um sistema de desigualdades. “As soluções não vão vir desde cima. As soluções para cruzar as crises estadunidenses estão nas mãos do povo”, constatam Mike e Silvia, diante da própria câmera. É o que enxerga também o líder comunitário Manuel Criollo: “É o povo que sustenta esse sistema”, lembrando que as pessoas organizadas podem ser as protagonistas das mudanças.
Não é uma tarefa simples a de colocar tanta gente e tantas situações para compor este outro retrato dos Estados Unidos e seu povo, mas por fim, é mesmo esta diversidade fragmentada que nos dá a oportunidade de compreender parte do que se passa por lá. E pensar nos erros que outras nações podem cometer, quando têm este país como referência. Em Porto Alegre, quando a produção foi exibida em junho, Alexandro, um cubano que passava por intercâmbio na cidade, repetia após a sessão que o fi lme precisava ser visto em Cuba, por todos. Desfazer mitos. Colocar a verdade no seu lugar. Por aqui também.
Num viaduto da capital gaúcha, há muitos anos se renova uma inscrição lembrando um pensamento de Mao: “O imperialismo é um tigre de papel”. Sempre achei esta frase um tanto ingênua, muito mais um desejo do que realidade. Mas este filme nos mostra sua fragilidade latente. Neste momento em que há tantas revoltas populares em ebulição e o capitalismo parece entrar novamente numa encruzilhada, mesmo que não seja de papel, o império outra vez expõe seus rasgos, dá sinais de que um dia pode e deve se desmanchar.