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Professor da Faculdade de Direito da USP, o
jurista Fábio Konder Comparato é conhecido por sua longa e firme militância na
luta pelos direitos humanos e democráticos no Brasil. Tem contribuído com
inúmeras entidades e movimentos sociais na formulação de propostas para a
transformação do povo brasileiro no sujeito de sua própria soberania. Nesta
entrevista exclusiva para Caros Amigos, ele analisa a questão
do poder no Brasil, as várias formas dissimuladas
de se adiar a democracia, os instrumentos para aperfeiçoar a participação
popular nos destinos do país e outros aspectos da maior relevância para a
compreensão da nossa realidade. Os argumentos lúcidos e pedagógicos do
professor Fábio Konder Comparato são imperdíveis.
Tatiana Merlino – O senhor nasceu em Santos?
Fábio Konder Comparato – Não me perguntem se eu
sou santista… (risos)
Hamilton Octavio de Souza – É
santista?
Eu não torço mais para nenhum clube. Futebol é o
ópio do povo (risos).
Tatiana Merlino – Mas, o senhor
nasceu em Santos, em que ano?
Em 1936, de modo que daqui alguns dias eu farei,
com a graça de Deus, 74 anos. Fiquei quatro anos morando no Guarujá, meu pai
tinha um hotel lá. Depois, eu vim para São Paulo com a família. Tive uma
formação de escola primária excelente. Até hoje tenho uma grande saudade das
minhas professoras primárias, que eram professoras daquele tempo antigo,
formadas no Elvira Brandão, muito sérias. Depois, eu cursei o Colégio São Luís;
de modo que eu fui formado e deformado por jesuítas. Entrei na Faculdade de
Direito em 1955, e terminei o curso em 1959. Depois, até 1963 eu fiquei na
França, fazendo meu doutorado em Direito. Voltei para o Brasil e fui trabalhar em
Brasília, com Evandro Lins e Silva, que era Ministro do Supremo Tribunal
Federal. Lá trabalhei como secretário jurídico dele. Saí de Brasília com uma
hepatite atroz, provocada pelo golpe de Estado de 1964. Em seguida advoguei,
tornei-me livre-docente da Faculdade de Direito da USP e depois professor
titular. Comecei lecionando Direito Comercial, mas depois me converti e passei
a lecionar Direitos Humanos.
Tatiana Merlino – Na faculdade o
senhor teve algum professor que o tenha influenciado?
O professor que mais me impressionou foi
exatamente um professor de Direito Comercial. Acho que foi por ele que eu fiz isso…
Hamilton de Souza – Tinha a ver com
Direitos Humanos?
Não. Mas, eu não lamento o longo período em que
lecionei Direito Comercial, porque me permitiu entrar nos arcanos do
capitalismo, desmontar toda a estrutura capitalista que enquadra a nossa vida
social.
Tatiana Merlino – Como se deu sua
conversão para os Direitos Humanos, por qual influência?
Foi, sem dúvida, por causa da Ditadura Militar. E
sobretudo, porque fui convidado por Dom Paulo Evaristo Arns para fazer parte da
Comissão de Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Paulo. E lá foi, realmente,
um aprendizado. Dom Paulo foi um dos baluartes da luta pela defesa da dignidade
humana. Lembro, apenas para dar uma ilustração, de como ele era, na época,
procurado or aqueles que sofriam com os sofrimentos e a morte de seus
familiares. O pai do Bernardo Kucinski, por exemplo, nunca se recuperou da
morte da filha, Ana Rosa Kucinski. Até hoje não se sabe do paradeiro do cadáver
dela. Ele ia procurar Dom Paulo todos os dias. Dom Paulo o recebia nem que fosse
por 5 minutos. O objetivo que Dom Paulo deu para a Comissão de Justiça e Paz
foi justamente o de divulgar todos os crimes do regime militar que nós
soubéssemos. Enfilho desapareceu, estava na rua e foi preso. Nós anotávamos
tudo isso, entregávamos para Dom Paulo, que ia regularmente ao quartel-general
II Exército e entregava a lista dos desaparecidos ao General Comandante. Para
que eles soubessem que nós sabíamos, e não inventassem mentiras, como fizeram
quando mataram sob tortura o Luiz Eduardo Merlino, por exemplo: “Ele tentou
fugir quando era conduzido numa viatura militar, foi atropelado e morreu.” A
ditadura militar temia, sobretudo, as manifestações no exterior. É por isso
que, hoje, nós temos que denunciar sistematicamente, no exterior, o acobertamento
dos assassinos e torturadores do regime militar pelo Poder Judiciário. O Estado
brasileiro tem receio disso. Quando meus filhos eram bebês, e viajávamos, minha
mulher e eu para a França (íamos todos os anos, porque minha mulher é
francesa), eu levava documentos nos cueiros deles. Eram relatos de atrocidades
e listas de pessoas presas, mortas, desaparecidas. E, naquela época, nós
entregávamos isso a um padre francês que morou cinco anos aqui no Brasil. E ele
divulgava isso na Igreja Católica. Mas, a Igreja Católica, no Brasil, salvo
algumas figuras exemplares, como Dom Paulo e Dom Helder Câmara, continuava
firmemente conservadora.
Hamilton Octavio de Souza – Nesse
período da Comissão de Justiça e Paz, o senhor já tinha participação em
eventos, atos, com relação à Anistia, à luta pela redemocratização do país?
Como o senhor atuava, o senhor tinha militância nesse tempo?
Eu não tinha uma participação muito ativa fora
da Comissão de Justiça e Paz. Mas participava de alguns eventos públicos. Por
exemplo, eu estive na Catedral de São Paulo, quando da celebração ecumênica da
morte de Alexandre Vannuchi Leme. Eu lembro que, ao sair da Catedral, havia
todo um aparato da polícia militar, com câmeras fotográficas, e ostensivamente
abri o guardachuva e avancei em direção a eles para que eles não me
fotografassem. Mas eles estavam fartos de saber da minha posição política. Eu
não fui
molestado, porque nunca me aproximei de nenhum
partido ou movimento da esquerda. Mas, eles me acompanhavam. Numa certa época,
eu comecei a trabalhar em banco, cheguei a diretor adjunto de um banco.
Tatiana Merlino – Simultâneo à
Comissão Justiça e Paz?
Exatamente. E uma vez o diretor presidente do
banco me chamou e indagou: “O que o senhor acha do terrorismo?” Saquei logo de
onde vinha a pergunta. Respondi com outra pergunta: “Mas, qual deles: o oficial
ou o outro?” Aí ele riu um pouco….
Tatiana Merlino – Como o senhor
avalia o período da redemocratização e a justiça de transição, ou a
inexistência de justiça de transição que houve no Brasil?
Esse é apenas um pormenor da manutenção
íntegra e até hoje inabalada da oligarquia. Se
há uma constante na História do Brasil, é o regime
oligárquico. É sempre uma minoria de ricos e poderosos que comanda, mas com uma
diferença grande em relação a outros países. Nós, qui, sempre nos apresentamos
como não oligarcas. A nossa política é sempre de duas faces: uma face externa,
civilizada, respeitadora dos direitos, e uma face interna, cruel, sem eira nem
beira. A meu ver, isto é uma consequência do regime escravista que marcou
profundamente a nossa mentalidade coletiva. O senhor de engenho, o senhor de
escravos, por exemplo, quando vinha à cidade, estava sempre elegantemente
trajado, era afável, sorridente e polido com todo mundo. Bastava, no entanto, voltar
ao seu domicílio rural, para que ele logo revelasse a sua natureza grosseira e
egoísta. Nós mantivemos essa duplicidade de caráter em toda a nossa vida
política. Quando foi feita a Independência, estava em pleno vigor, no Ocidente,
a ideologia liberal, e, devido ao nosso complexo colonial, nós não podíamos
deixar de ser liberais. Então, iniciou-se o trabalho de elaboração da
Constituição, logo em 1823. E os constituintes resolveram instituir no Brasil
um regime liberal, com a instituição de freios contra o abuso de poder.
Evidentemente, isso foi contado ao Imperador, que imediatamente mandou fechar a
Assembléia Constituinte. Mas, qual foi a declaração dele? “Darei ao povo
brasileiro uma Constituição duplicadamente mais liberal.” Eles não perceberam a
aberrante contradição: uma Constituição outorgada pelo poder que era
duplicadamente mais liberal do que aquela que estava sendo feita pelos
representantes do povo. Bom, essa Constituição não continha a menor alusão à
escravidão e dispunha: “São abolidas as penas cruéis, a tortura, o ferro
quente.” Porque todo escravo tinha o corpo marcado por ferro em brasa. Essa marca
era dada desde o porto de embarque na África. Pois bem, apesar dessa
proibição da Constituição de 1824, durante todo o Império nós continuamos a
marcar com ferro em brasa os escravos. A Constituição proibia os açoites, mas
seis anos depois foi promulgado o Código Criminal do Império que estabeleceu a
pena de açoites no máximo de 50 por dia. E é sabido que essa pena só se
aplicava aos escravos e, geralmente, eles recebiam 200 açoites por dia. Houve
vários casos de escravos que morreram em razão das chibatadas recebidas. E,
aliás, a pena de açoite só foi eliminada no Brasil em 1886, ou seja, às
vésperas da abolição da escravatura.
Em 1870, para continuar essa duplicidade típica da
nossa política, como vocês sabem, foi lançado o Manifesto Republicano, aqui no
estado de São Paulo. Esse manifesto usa da palavra democracia e expressões
cognatas – como liberdades democráticas, princípios democráticos – nada menos
do que 28 vezes. Não diz uma palavra sobre a escravidão. E, aliás, o partido
republicano votou contra a lei do ventre livre no ano seguinte ao manifesto, em
1871, e votou até contra a Lei Áurea. Em 1878, votou a favor da abolição do
voto dos analfabetos. A Proclamação da República, todo mundo sabe, foi um
“lamentável mal entendido”, para usar a expressão famosa de Sérgio Buarque de
Hollanda. E, efetivamente, o Marechal Deodoro não queria a abolição da
monarquia, queria derrubar o ministério do Visconde de Ouro Preto. Mas aí, no
embalo, os seus amigos positivistas o convenceram que era melhor derrubar a
monarquia. Pois bem, até 1930, nós tivemos a República Velha, que, como dizia
meu avô, foi substituída pela República Velhaca. E, por que foi feita a
Revolução de 1930? Todo mundo sabe. As fraudes eleitorais.
Hamilton Octavio de Souza – São Paulo
e Minas que comandavam as fraudes.
Sim, pois é. Foi feita a revolução para isso. Sete
anos depois o regime desembocou num golpe de Estado, que suprimiu as eleições.
A autoproclamada “Revolução” de 1964 foi feita em nome de quê? Leiam os
documentos: a ordem democrática. Hoje, é preciso dizer que não é só no Brasil,
as no mundo todo que a palavra democracia tem um sentido contraditório com o
conceito original de democracia. O grande partido da direita na Suécia, que
agora chegou ao parlamento sueco, pela primeira vez, um partido xenófobo e
racista, chama-se Suécia Democrática. E, num certo país da América Latina, como
todo mundo sabe, o partido mais à direita do espectro político chama-se
como, mesmo?
Hamilton Octavio de Souza – Se chama
Democratas.
Então, esta é a nossa realidade. É dentro desse
quadro que se pode e se deve analisar o processo eleitoral. Ou seja, nunca dar
o poder ao povo, dar-lhe apenas uma aparência de poder. E, se possível, uma
aparência festiva, alegre. Essa disputa eleitoral, que nós estamos assistindo,
ela só interessa, rigorosamente, ao meio político. O povo não está,
absolutamente, acompanhando a campanha eleitoral. Vai votar, maciçamente, na
candidata de Lula, mas para ele não tem muito interesse essa campanha
eleitoral. Então, as eleições, o que são? São um teatro. Oficialmente, os
eleitos representam o povo. É o que está na Constituição. Na realidade, eles
representam perante o povo, são atores teatrais. Mas, com um detalhe: eles não
se interessam pelas vaias ou pelos aplausos do povo. Eles ficam de olhos postos
nos bastidores, onde estão os donos do poder. É isso que é importante. De modo
que, para nós, hoje, é preciso deixar de lado o superficial e encarar o
essencial. O que é o essencial? Como está composta, hoje, a oligarquia
brasileira. E como eliminá-la. Como está composta a oligarquia brasileira?
Obviamente, há um elemento que permanece o mesmo desde 1500:
os homens da riqueza. Só que hoje eles são variados: os grandes proprietários
rurais, os banqueiros, os empresários comerciais, os grandes comerciantes. Mas
o elemento politicamente mais importante da oligarquia atual é o dos donos dos
grandes veículos de comunicação de massa: a imprensa, o rádio e a televisão. O
povo está excluído desse espaço de comunicação, que é fundamental em uma
sociedade de massas. Ora, esse espaço é público, isto é, pertence ao povo. Ele
foi apropriado por grandes empresários, que fizeram da sua exploração um
formidável instrumento de poder, político e econômico. Hoje, os oligarcas
brasileiros já montaram em esquema que torna as eleições um simples teatro
político. É claro que eles não podem, em todas as ocasiões, fazer um presidente
da República, por exemplo. Mas eles podem – e já o fizeram – esvaziar o
processo eleitoral, tirando do povo todo o poder decisório em última instância
e transferindo – o aos eleitos pelo povo; eleitos esses cuja
personalidade, na grande maioria dos casos, é
inteiramente fabricada pelos marqueteiros através dos meios de comunicação de
massa. O único risco para a oligarquia brasileira (e latino-americana, de modo
geral) é a presidência da República, porque a tradição latino-americana é de
hegemonia do chefe do Estado em relação aos demais Poderes do Estado. Se o
presidente decidir desencadear um processo de transformação das estruturas
sócio-econômicas do país, por exemplo, ele porá em perigo a continuidade do
poder oligárquico.
Ora, Luiz Inácio Lula da Silva já demonstrou que
não encarna esse personagem perigoso para a oligarquia. Ele é o maior
talento populista da história política do Brasil, muito superior a Getúlio
Vargas. Mas um populista francamente conservador, ao contrário de Getúlio ou de
Hugo Chávez, por exemplo. Mas o que significa ser um político populista?
Populista é um político que tem a adesão muitas vezes fanática do povo, que tem
um extraordinário carisma popular, mas que mantém o povo perpetuamente longe do
poder. O populista conservador pode até, se isso agradar ao povo, fazer
críticas aos oligarcas, mas mantém com eles um acordo tácito de permanência do
velho esquema de poder. Ora, isto representa a manutenção do povo brasileiro na
condição de menor impúbere, ou seja, de pessoa absolutamente incapaz de tomar
decisões válidas. O populista é uma espécie de pai ou tutor, que trata os
filhos com o maior carinho, enche-os de presentes, brinquedos, etc, mas nunca
lhes dá o essencial: a verdadeira educação para que eles possam, no futuro,
tomar sozinhos as suas decisões. É um falso pai. O verdadeiro pai existe para
desaparecer. Se o pai não desaparecer, enquanto pai, alguma coisa falhou, uma
coisa essencial, que é a educação dos filhos para a maturidade. O fundamental
do líder populista é que ele mantém o povo muito satisfeito, mas num estado de
perpétua menoridade.
Tatiana Merlino – Por que o senhor
acha que ele supera o Getúlio Vargas?
Porque Getúlio Vargas tinha, teve, até o fim, uma
oposição ferrenha, raivosa, não de partidos políticos, eles não existiam, mas
dos grandes fazendeiros de São Paulo. Aliás, fizeram até uma revolução em 1932.
Além disso, ele era autoritário, por convicção positivista: a chamada “ditadura
republicana”. Lula não, ao contrário do que se afirmou em um desatinado
manifesto recente. Ele tem horror à coação, à violência. Ou seja, ele
é o avesso de Getúlio. Basta ler Memórias do
Cárcere, de Graciliano Ramos, para se perceber que o regime militar de 64 não
inventou nada. Foi uma reedição desse aspecto tenebroso de Getúlio.
Hamilton Octavio de Souza – Esse
controle que o Lula exerce, como isso tem sido possível num país carente, com
demandas seculares, desigualdade?
A mentalidade do Lula não é de raciocínio
frio, ela é quase que toda dominada pela sensibilidade e a intuição. É
por isso que ele tem lances geniais no desmonte da oposição. É um talento por
assim dizer inato. E é por isso que todo esse pessoal do PT foi atrás dele,
porque senão eles não subiriam, jamais. Não preciso dar nomes, mas nenhum deles
tem o milésimo do talento político do Lula. Eles foram atrás e chegaram lá. Mas
são todos infantis em
política. Ao chegarem ao poder, procederam como a criança que
nunca comeu mel: foram comer e se lambuzaram todos. Mas, enfim, esse é o homem.
Isso não significa
que ele seja totalmente negativo. As boas coisas
do governo Lula são mantidas por influência dos seus bons companheiros. E ele sabe
ouvi-los, graças a Deus. Em matéria de direitos humanos, nós temos que
reconhecer o trabalho admirável do Paulo de Tarso Vannuchi. Em matéria de
educação, eu entendo que o Fernando Haddad fez um bom trabalho. Mas isso não
compensa o lado extremamente negativo dos maus elementos que pressionam Lula.
Sinto, por exemplo, que cede a tudo aquilo que o Nelson Jobim pede. Será
preciso relembrar que, na véspera do julgamento da ação movida pelo Conselho
Federal da OAB no Supremo Tribunal Federal sobre a abrangência da Lei de
Anistia, Lula convidou todos os ministros do Supremo para jantar no Palácio do
Planalto? Não é difícil imaginar o assunto que foi objeto de debate durante
essa simpática refeição. Aliás, um ministro do Supremo Tribunal Federal me
disse: “Comparato, você não imagina as pressões que nós recebemos…”
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