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Chacina de 4 de janeiro é desafio ao novo comando da Segurança Pública.
Num país capitalista organizado, Alckmin estaria enfrentando pedidos de impeachment.
A chacina de Campo Limpo (São Paulo, capital), realizada em 4 de janeiro, parece haver inaugurado um novo padrão de atuação dos grupos de extermínio ligados à Polícia Militar.
Em primeiro lugar porque, segundo testemunhos publicados,foram 14 os seus protagonistas, número muito superior ao habitual (geralmente dois, em motocicleta). Em segundo lugar, porque teriam chegado gritando “É polícia!”, também algo incomum.
Claramente, trata-se de um desafio deliberado ao próprio governo estadual. Depois de tolerar e até estimular a extremada violência policial — incentivando as ações da ROTA e dando aval, em novembro, à execução de nove pessoas de uma só vez, ao declarar que “quem não reagiu está vivo” — o governador Geraldo Alckmin (PSDB),assustado com a repercussão negativa dos crimes, encontra dificuldades para desmantelar os grupos de extermínio ou até mesmo impor limites à barbárie disseminada por eles.
A chacina de 4 de janeiro, da qual resultaram sete populares mortos e dois feridos, é uma provocação ostensiva ao novo comando da Secretaria de Segurança Pública (SSP). Até mesmo por indícios de que a ação teria como um dos objetivos vingar-se de um popular que, dias antes, filmou a execução de um servente, à luz do dia, por PMs fardados(entregue à TV Globo, o vídeo foi divulgado, e os policiais envolvidos foram presos).
Quatro dias após a nova matança, o governo começou a dar sinais de que pretende coibir o uso da violência estatal. Publicou resolução que proíbe os PMs de socorrer feridos (“socorro” que abre margem para destruição de provas) e determina o fim do registro das ocorrências de “resistência seguida de morte” — que passam a ser designadas como “morte decorrente de intervenção policial”, mas não como “homicídio”, como ocorre com qualquer crime de morte.
Um passo positivo, sem duvida. É intrigante que, nesta chacina e praticamente em todas as outras, PMs tenham chegado ao local, imediatamente após as execuções, e recolhido as cápsulas dos projéteis deflagrados pelos exterminadores, comprometendo as investigações (e apesar disso não tenham sido punidos). Em outro caso recente,familiares de vítimas que tentaram obter informações com PMs, após uma chacina, foram brutalmente agredidos. Qual a disposição real do novo comando da SSP de investigar os grupos de extermínio? A Folha de S. Paulo deu a seguinte manchete interna, na edição de 7 de janeiro: “Polícia só esclarece 1 das 24 chacinas do ano passado”.
Num país capitalista organizado, Alckmin estaria enfrentando pedidos de impeachment. Mas estamos no Brasil. O Ministério da Justiça, mostrando desconhecimento e descaso diante do morticínio em São Paulo, chegou a propor que tropas do Exército fossem deslocadas para o bairro de Paraisópolis. O que se espera do governo federal, porém, são medidas capazes de levar o governo estadual a conter o extermínio cometido por PMs, fardados ou não.
Paradoxalmente, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República mantém-se em silêncio, como se São Paulo pertencesse a outro país. Quem primeiro falou em direitos humanos, na presente crise, foi o novo secretário estadual de Segurança Pública, Fernando Grella, ao tomar posse, para lembrar que a repressão ao PCC não pode atropelar as garantias fundamentais dos cidadãos.
O Ministério Público Federal permanece anestesiado (à exceção do procurador que exigiu a troca do comando da PM), e somando-se as omissões ao estado letárgico dos partidos de oposição, tudo garante ao governador que cumpra o restante do seu mandato sem maiores sobressaltos, apesar dos recordes de letalidade os tentados pela Polícia Militar.
Enquanto isso, ganham espaço tímido na mídia os rostos de alguns dos jovens executados nas chacinas, como Luciene, a ativista social, ou Lah, o rapper amigo do escritor Ferréz e do músico Mano Brown. Não foram mortos por supostos laços com o PCC, ou porque tinham “passagens na polícia”, ou porque tivessem “envolvimento com o tráfico”. Foram mortos porque eram pobres, negros ou mulatos, e moravam na periferia. Foram mortos porque, no peculiar Terrorismo de Estado vigente em São Paulo, vigora a pena de morte, que pode ser aplicada aleatoriamente a qualquer morador de bairros distantes do centro e favelas.
Como bem sintetizou Ferréz no enterro de Lah: “Estamos em uma ditadura, no limite da opressão. Nos bairros ricos a polícia dá bom dia, boa tarde. Aqui, ela mata”. A quem achar exagerada essa avaliação, recomenda-se que releia a declaração do ex-chefe da Polícia Civil, delegado Marcos Carneiro de Lima: “A gente nunca teve chacina nos Jardins aqui em São Paulo. Por que será? Porque é tão fácil matar pobre na periferia. Porque ainda existe uma grande parcela da sociedade que acha que matar pobre na sociedade é matar o marginal de amanhã. Isso é uma visão preconceituosa da própria sociedade que encara que essa ação de matar é uma ação legítima. Não é legítima” (Folha de S. Paulo, 22/11/2011).
A maioria das vítimas das chacinas — simples trabalhadores, pessoas dignas, decentes — é transformada em mera estatística. Raramente os noticiários impressos, eletrônicos ou digitais explicam quem são essas pessoas que tiveram suas vidas brutalmente abreviadas. Para isso é preciso que tenham conseguido alguma notoriedade anterior. Se a mídia se desse ao trabalho de publicar a imagem dos cidadãos assassinados pelos exterminadores, concedendo a esses crimes o mesmo tempo e espaço dedicado a certos casos tratados com o habitual sensacionalismo, será que a sociedade continuaria a ignorar a tragédia?
Pedro Pomar e Fausto Salvadori