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Daniel Santini
A Central Energética Vicentina não registrou a Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores dos cortadores de cana mortos em acidente de trânsito no último sábado, 3 de dezembro de 2011. Ao todo, 33 pessoas morreram, incluindo o motorista do ônibus que transportava a equipe. O documento é necessário para o monitoramento das condições de trabalho de grupos empregados em diferentes unidades da federação e só pode ser emitido diante da apresentação dos contratos. Trata-se de um mecanismo de controle importante para o combate a violações trabalhistas e à escravidão no campo.
A Certidão Declaratória foi instituída em 2009 pela Instrução Normativa número 76 do Ministério do Trabalho e Emprego, em lugar da Certidão Liberatória de 2006. A alteração facilitou o processo de emissão, mas, mesmo assim, muitas empresas deixam de fazer a comunicação às autoridades.
Os cortadores mortos no acidente foram contratados pela usina nos municípios de Buíque e Pedra, no agreste pernambucano, e passaram cerca de oito meses trabalhando em Vicentina, município próximo a Dourados, no Mato Grosso do Sul. Eles regressavam para as festas de final de ano com familiares quando o ônibus bateu em uma carreta na BR-116, próximo a Jequié, na Bahia. Por lei, a usina deveria ter mantido o Ministério do Trabalho e Emprego em Pernambuco informado sobre as viagens. “O documento deveria ter sido protocolado no estado de origem, o que não aconteceu. Não há registro nem em Caruaru, nem na Superintendência no Recife e nem em nenhuma das outras unidades no Estado”, afirma Francisco Reginaldo, gerente do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em Caruaru, cidade mais próxima com uma unidade regional para tais trâmites.
“A Superintendência de Pernambuco entrou em contato com a da Bahia e a do Mato Grosso do Sul e estamos verificando se os trabalhadores estavam em situação irregular, se eles haviam sido registrados da maneira devida”, ressalta o representante do MTE. Não é a primeira suspeita de irregularidades envolvendo a Central Energética Vicentina. Inaugurada em 2008, a usina já enfrenta outro processo, este aberto pela 2ª Promotoria de Justiça de Fátima do Sul (MS) com o objetivo de apurar impactos ambientais. A Repórter Brasil tentou contato com os proprietários, os sócios Edilberto Antonio Meneguetti, Carlos Reinaldo Meneguetti e José Wagner Meneguetti, mas nenhum deles se posicionou.
“Toda usina interessada em recrutar trabalhadores em outros estados tem que seguir um trâmite, declarar que eles estão sendo transportados com contrato regular, que vão ter alimentação, que vão ser observadas condições de segurança, que terão transporte coletivo oferecido pela empresa. A Certidão de Declaração de Transporte de Trabalhadores é o documento que possibilita esse monitoramento”, explica Francisco Reginaldo, representante do MTE. “Temos o máximo de cuidado para que o trabalhador que viaja não fique desamparado, especialmente no corte de cana. São pessoas que já ficam longe da família, em um trabalho penoso. E vemos muitos casos de trabalho escravo, em que a pessoa sai de um ponto onde são feitas promessas e fica refém, não consegue nem voltar. Entra no emprego novo já devendo”, destaca o gerente. “Infelizmente, os maus empregadores sempre encontram uma forma de burlar a legislação. É uma saga que esse país sofre e que não é de agora. É de séculos, mas o Brasil está mudando”, completa.
Direitos e Justiça
A morte dos trabalhadores causou comoção e provocou a mobilização de autoridades federais, estaduais e municipais. Um avião da Força Aérea Brasileira chegou a ser disponibilizado para o transporte dos corpos e comissões foram formadas para orientar os familiares. A advogada Marta Andrade, designada pela prefeitura de Buíque para auxiliar os parentes no registro dos óbitos e no pedido das verbas indenizatórias a que eles têm direito, não descarta uma ação na Justiça contra a Central Energética Vicentina. “Devemos abrir uma ação coletiva em nome dos familiares. Estamos tentando contato com a usina, mas não conseguimos ainda”, diz. “Algumas pessoas se apresentaram como representantes da empresa, mas não tinham nenhuma documentação que comprovasse isso”, completa.
Muitos dos que viajaram para cortar cana na última safra eram jovens em busca de melhores perspectivas. “A empresa sempre vem buscar gente aqui, organiza grupos e leva muitos jovens. A situação não é boa, aqui é um lugar onde não se oferecem muitas vagas”, diz Ane Maria Barbosa de Mello, mãe do trabalhador Jandecarlos Barbosa de Mello, de 24 anos, morto no acidente. “A gente recebeu assistência dos governantes, mas ninguém da empresa veio nos procurar. Não recebi nenhuma satisfação”, completa a mulher.
De acordo com o juiz trabalhista Marcus Barberini mesmo em situações irregulares em que as empresas deixaram de emitir a Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores, os trabalhadores continuam tendo os direitos mantidos. É o caso do acidente ocorrido neste final de semana. “Mesmo sem a declaração, as famílias têm direito ao auxílio acidentário e a pensão por morte”, explica, destacando que e o acidente pode ser considerado acidente de trabalho, conforme o artigo 21 da Lei número 8.213.
Migração
A contratação de trabalhadores locais por empresas de outros estados é uma rotina na cidade, de acordo com a assessora do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Buíque, Creusa Couto. “Não é só para o Mato Grosso do Sul que eles vão, mas também para o interior de São Paulo e de Minas Gerais. Sempre acontece em julho e em janeiro. Muitos casados e filhos deixam suas famílias em busca de alternativas. É um trabalho pesado. A maioria dos que viajam são homens com a pele escura, morenos. Eles chegam a ganhar R$ 2,5 mil por mês, valor que não conseguem ganhar ficando aqui”, lamenta. “Nosso município é rico, tem solo fértil, clima bom, mas não tem assistência e gestores que administrem os recursos da maneira devida. Por isso muitos viajam. Falta planejamento, um olhar diferente para o nordestino. Com certeza eles não sairiam da cidade se houvesse alternativa”, defende Creusa Couto. “Com esse acidente, a cidade é uma tristeza só, a gente não tem nem palavras para dizer”.
A sindicalista conta que, nas últimas décadas, houve mudanças e a migração chegou a ser interrompida. “Nos anos 80, eles saiam no gaiolão mesmo, aquele caminhão que serve para carregar cana. Depois, houve uma conscientização de que os trabalhadores não deveriam ser transportados naqueles carros e a meta passou a ser que eles não saíssem da terra para buscar meios em outros estados. Melhorou, mas, o mundo é aberto e recentemente começaram a vir esses ônibus de outros estados. As pessoas passaram a organizar turmas, grupos de homens para trabalhar no corte de cana”, explica. Ela diz que é comum que tais grupos não tenham toda a documentação em ordem. “Para se manter o transporte em dia, com tudo pago, não é fácil. O custo é alto e muitos não pagam os encargos que são cobrados”, afirma.
Aliciamento e transporte de trabalhadores é crime previsto no artigo 207 do Código Penal.
Em Goiás
Outra tragédia envolvendo trabalhadores rurais aconteceu na sexta-feira (2), na BR-050, em Campo Alegre de Goiás (GO), na região Sudeste. Um grupo de nove trabalhadores de uma fazenda de soja estava sendo transportado na carroceria de uma caminhonete, que se chocou com outro veículo. O fazendeiro era o condutor da caminhonete e morreu na hora, assim como sete trabalhadores que foram projetados por conta da colisão. Duas pessoas estão internadas em estado grave. As causas do acidente ainda estão sendo apuradas.
De acordo com Jacquelinne Carrijo, auditora fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás (SRTE/GO) que está cuidando do caso, além das infrações de trânsito o empregador cometeu infrações trabalhistas, já que a legislação determina o transporte de trabalhadores em veículos fechados, sentados e com cinto de segurança. “Independente do trecho a ser percorrido ou das condições da estrada, o veículo tem que estar de acordo com a legislação”, conta Jacquelinne. A SRTE/GO está investigando as questões trabalhistas.
No próximo dia 15, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e a SRTE/GO irão realizar uma audiência pública na Câmara Municipal de Campo Alegre de Goiás, às 20 horas, para conscientizar a comunidade e os empregadores sobre a importância de transportar os empregados de forma adequada. Foram convocados os sindicatos patronais e de trabalhadores rurais, além de secretários de transporte das prefeituras mais próximas. “O objetivo é evitar que situações como essa se repitam. Não temos como fiscalizar tudo o tempo todo, para isso a educação cumpre um papel fundamental”, disse Luiz Antonio Vieira, chefe da Delegacia da PRF de Catalão (GO).
Colaborou Bianca Pyl e Maurício Hashizume