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É só começar uma propaganda de sabonete bactericida na televisão para o empresário Flávio Donadio se remexer no sofá. Sua mulher, Gabriela Vilela, sabe que lá vêm reclamações costumeiras e ri da indignação do marido. “Os anúncios são até engraçados, mostram imagens alegres, têm músicas, mas acho horrível quando o locutor começa a dizer coisas como ‘seus filhos podem estar expostos a bactérias que podem causar doenças!’ ou que é preciso lavar as mãos com aquela marca de sabonete depois de tossir ou espirrar”, explica Donadio. “Alimentar uma paranoia para promover a venda de um produto é, no mínimo, palhaçada. Sem falar nas propagandas de xampus e condicionadores que aumentam em até 37% o brilho de seus cabelos, deixando-os até 42% mais lisos”, brinca.
Um pouco mais graves são as agruras da professora paulistana Judith Arantes: “As propagandas de cerveja são extremamente machistas por mostrar mulheres com rostos e corpos perfeitos, modificados por computador, com roupas curtíssimas, mudas, como se fossem um brinde que vem com a bebida. Quando começa um anúncio desses, passo raiva!”
Segundo o presidente do Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar), Gilberto C. Leifert, cerca de um terço das representações abertas em 2010 pelo órgão no Ministério Público partiu de consumidores. “As motivações são as mais diversas, mas é notável a preocupação com a veracidade na apresentação dos anúncios, principalmente em relação a disponibilidade de estoques, prazos de entrega e condições de preço. Consumidores também são sensíveis quanto à respeitabilidade e segurança de crianças e adolescentes”, afirma.
No caso das propagandas de cerveja, porém, Leifert acredita que tudo está resolvido: “As regras éticas para a publicidade de bebidas alcoólicas em geral foram revisadas de forma radical em 2003, com veto do uso de qualquer apelo de natureza sensual. Em 2008, tirando proveito da larga experiência acumulada pelo Conselho de Ética no julgamento de casos envolvendo publicidade de cerveja e outras bebidas, novos aperfeiçoamentos foram incorporados às normas. Nesse intervalo de tempo, o Conar julgou algumas centenas de casos. Houve dezenas de reprovações”.
(foto: © Gerardo Lazzari)
Produtos e valores
Quando alguém se sente ofendido, discriminado ou enganado por um anúncio, pode denunciar ao Conar e pedir sua retirada dos meios de comunicação. Mas e quando a propaganda é simplesmente horrível, cafona, de mau gosto? Márcio Oliveira, vice-presidente de operações da agência Lew’Lara\TBWA, uma das maiores do Brasil, não tem medo de dizer: “A propaganda hoje está muito chata. Ou é varejo, gritaria, ou parece que passou por um checklist na sala de reunião da agência: tem isso, tem aquilo”. Para Oliveira, o segredo de uma boa propaganda é emocionar ou fazer rir, tirar sarro. Sua agência é responsável pela praga dos “pôneis malditos”, propaganda de um carro que tem tantos cavalos de potência “que o resto é pônei”.
No anúncio, um homem que dirige um carro da marca concorrente abre o capô e depara com pôneis coloridos que cantam um jingle chiclete. A versão para a internet lança uma maldição no final do filme: se o espectador não repassá-lo para dez pessoas, a musiquinha irritante dos pôneis vai ficar na sua cabeça. A gracinha foi vista por mais de 10 milhões de pessoas, repercutindo numa ação que o publicitário chama de “ousadia necessária para a nova propaganda” – aquela que dialoga com o consumidor principalmente através das redes sociais e canais de vídeo na internet.
A liberdade e a eficiência das redes sociais são de fato um outro filão que está sendo explorado. A cadeia de fast-food Burger King, por exemplo, fez uma peça “passável” para exibir nos comerciais da TV e uma versão proibida da peça, ainda mais apelativa, repleta de palavrões, que acabou caindo no Youtube.
O advogado Antonio Paraguassu Lopes, autor do livro Ética na Propaganda, lembra com saudosismo a época em que publicidaMNidiade era arte. Para ele, criatividade, ética e valores foram por água abaixo há uns dez anos, quando algumas leis a respeito da remuneração das agências publicitárias sofreram mudanças no início dos anos 2000. Segundo ele, a qualidade caiu porque os profissionais passaram a ser mal remunerados. “Agências se descapitalizaram, não contratam profissionais, pagam freelances. O governo perde porque não há recolhimento, os profissionais perdem porque não há emprego e a sociedade perde porque não há qualidade. Além disso, começaram as apelações, vale tudo para ganhar uma concorrência: de mulher pelada vendendo trator a lutador de boxe vendendo sutiã”.
Mas há quem acredite que a propaganda deve ser pensada mais a fundo, e não apenas classificada como boa ou ruim. Em um artigo escrito para o site Casa do Galo, o publicitário Nauro Rezende Jr. coloca a propaganda como uma perigosa fábrica de preconceitos e até de comportamentos escusos que perduram se não houver cuidado, como a famosa lei de Gérson, que legitimou o tirar vantagem de qualquer situação de maneira egoísta e antiética. A expressão nasceu de uma propaganda de cigarros na qual o meia-armador Gérson, da seleção brasileira tricampeã em 1970, dizia: “Por que pagar mais caro se o (cigarro) Vila me dá tudo que eu quero? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também”.
Rezende Jr. diz ainda que paródia com violência doméstica, consumismo exagerado, ridicularização de minorias eram, e continuam a ser, lugar-comum nos roteiros de comerciais do Brasil e de outras searas. “A mensagem publicitária tem grande peso na cultura popular, pois se utiliza de todos os artifícios para convencer o receptor e, ao convencê-lo sobre o produto, acaba por convencê-lo também dos demais elementos da mensagem.”
(foto: © Gerardo Lazzari)
Obesidade no Brasil? Imagina
“Cheeeeega!”, bradou a jornalista Juliana Vilas diante dos pedidos insistentes das filhas Helena, 5 anos, e Isadora, 4, na frente da televisão. “Eu tinha TV por assinatura e elas começaram a se interessar pelo canal Discovery Kids. Mal sabiam falar e passaram a me pedir para comprar brinquedos. Se elas pouco vão ao shopping e ao supermercado, como sabiam, com menos de 3 anos, o que significa comprar?”, questionou a mamãe em surto. Quando as pequenas começaram a pedir brinquedos e sapatos pela marca, a jornalista resolveu cortar o mal pela raiz: “Se há tanta publicidade, por que cobrar assinatura? Se eu pago mensalidade/assinatura, não quero ver publicidade. Cortei o serviço, sem dó, antes que fosse tarde. Hoje brincamos, pintamos e elas assistem a DVDs”.
De acordo com estudo do projeto Criança e Consumo do Instituto Alana, que analisa o consumismo infantil, bastam 30 segundos para fixar uma marca na cabeça de uma criança. “E os publicitários sabem disso”, diz uma das coordenadoras do projeto, Gabriela Vuolo: “Anunciar para criança é um negócio lucrativo, ninguém quer perder esse filão. Uma pesquisa de 2003 revela que as crianças influenciam cerca de 80% dos processos de decisão de compra dentro de uma casa”, observa Gabriela. “Mesmo produtos que não são infantis anunciam com elementos infantis. E por isso também não conseguimos até hoje aprovar sequer uma lei que regulamente a questão no país”, lamenta.
Enquanto isso, outra Juliana, empresária, trava uma batalha ao lado do marido, Paulo Carvalho, advogado, pela alimentação saudável de Maria Eduarda, 4 anos, e Maria Nina, 2.
(foto: © Paulo Pepe)
“Restaurantes fast-food exercem um poder incrível sobre elas. Há pouco tempo lançaram uns brindes dos Smurfs, dos quais elas nunca tinham ouvido falar – porque são da nossa época! Agora, querem comer no restaurante mil vezes para ganhar os bonecos. Tivemos de comprar DVD com os desenhos antigos e levá-las para ver o filme no cinema… Uma loucura”, relata Juliana.
Gabriela Vuolo diz que esse também tem sido motivo de preocupação para o projeto, que inclusive travou uma batalha com o Conar por causa do veredito para o pedido de suspensão de um comercial de uma rede de restaurantes. “Denunciamos o comercial ao Conar e recebemos um parecer chocante. Chamaram o Instituto Alana de ‘bruxa alana’, dizendo que a gente odiava as criancinhas. Disseram que no Brasil não era preciso se preocupar com obesidade infantil porque os nossos ‘menininhos moreninhos’ sofrem de desnutrição e que o problema de obesidade acontece apenas com os menininhos loirinhos da Dinamarca. O parecer está em nosso site para quem quiser ver.”
Terra sem lei
Na terra dos “branquinhos com problemas de obesidade infantil”, também conhecida como Estados Unidos, a brasileira Kelly Santiago sente o peso dos apelos das propagandas sobre a filha Isabella, de 8 anos. A pequena aponta os brinquedos “do canal tal” e nem muda na hora da propaganda, só para ver as novidades. “Há também a questão de que aqui é tudo muito barato, uma boneca custa cerca de US$ 4, então, se você não se policiar, compra mesmo.
O Brasil ainda é menos rigoroso com a publicidade infantil do que os Estados Unidos, que ao menos têm leis a regular a questão. Aqui, artigos como o 4o do Código de Defesa do Consumidor, que deveriam proteger o consumidor vulnerável, são convenientemente esquecidos, abrindo brechas para propagandas como a do Caveirão do Bope.
Já retirado do ar pelo Conar após pedido do Alana – mas disponível no Youtube –, o comercial mostra meninos vestidos de preto, com quepe e botas, arrebentando portas ao som de sirenes, pedindo reforço ao “esquema tático blindado”. No final, um caminhão preto de plástico é apresentado, com bonecos de soldados armados. O brinquedo continua sendo vendido.
“Propaganda para crianças é um verdadeiro absurdo”, admite o advogado Antonio Paraguassu. “A lei que rege a propaganda é de 1960, mas é boa, se adapta. O brasileiro é que não vai atrás dos direitos, prefere deixar tudo como está”, lamenta. Gabriela Vuolo engrossa o coro: “Pais, professores, tios que virem uma propaganda abusiva, enganosa, que desrespeite a infância, denunciem ao Instituto Alana, liguem para a emissora, o fabricante, botem a boca no trombone! A gente sabe que é uma luta dura, contra uma indústria bilionária, mas não vale ficar calado, deixando os pequenos absorverem todas essas mensagens”.
Na Comunidade Europeia, nos Estados Unidos e no Canadá, os espaços de telecomunicações que são objeto de concessão pública, como rádio e TV, são objeto de sistemas de regulação de conteúdo. O objetivo é proteger as produções nacionais e coibir a veiculação de conteúdos com potencial de agressão a direitos humanos, como discriminação por gênero, raça, etnia, opção sexual ou religiosa. A proteção à infância e à saúde também deve ser levada em conta nas programações. Em vários países, até a produção de publicidade de alimentos pouco nutritivos e de outros produtos nocivos à saúde é regulada.
“Embora esteja prevista na Constituição brasileira, a regulamentação e criação de meios legais para proteger os cidadãos do efeito nocivo dessa publicidade, enfrenta uma resistência feroz dos fabricantes”, diz o sociólogo Venício Artur de Lima, autor do livro Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia.
Para Venício, o Brasil é o único país em que foi inventado o que empresários do setor chamam de “liberdade de expressão comercial”, conceito que se apropria da ideia de liberdade, como se mídia, anunciantes e agências de publicidade fossem os legítimos representantes do direito individual e coletivo contra a “censura” por parte do Estado. Desse modo, o consumidor fica desavisado de que certos alimentos, devorados sem moderação, trazem riscos à saúde – obesidade, diabete, hipertensão, acidentes vasculares cerebrais e infarto – comparáveis aos danos causados pelo cigarro.