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Em uma rua de chão ao lado da fábrica Flaskô, em Sumaré (SP), dois homens caminham com materiais de trabalho na mão. Perguntados se sabiam que estavam perto de uma experiência inovadora na história do Brasil, uma fábrica sem patrão, um deles pergunta, claramente surpreso: “Como assim, sem patrão?”. O outro, rapidamente, encontra a explicação: “É, ele morreu”. Mas ele, na verdade, eles – Luís e Anselmo Batschauer, da Corporação Holding Brasil – estão vivos e cheios de dívidas.
O fato é que eles não mandam mais na fábrica de transformação de plástico, que produz vários tipos de embalagens industriais, ocupada e sob comando dos trabalhadores desde 2003.
De lá pra cá, a Flaskô colecionou processos judiciais, vitórias, cortes de energia, apoiadores, decepções, enfrentamentos diretos e indiretos e hoje, oito anos depois, pode dar aulas de resistência. É a única fábrica ocupada efetivamente por trabalhadores no Brasil, mas mesmo assim sustenta fazer parte do Movimento de Fábricas Ocupadas, na expectativa de que ele possa vir a ser reconstituído.
A leitura é a seguinte: em momentos de crise, o cerco contra a Flaskô aperta. Porque apesar de pequena – são 69 trabalhadores e trabalhadoras – representa um modelo perigoso. “É uma fábrica isolada, a princípio inofensiva, do ponto de vista da nossa capacidade de influenciar a luta de classes, mas é um mau exemplo [do ponto de vista dos patrões]. Sabemos que quando a situação começa a ficar crítica, os trabalhadores podem recorrer à ocupação de fábrica”, avalia Josiane Lombardi, do Centro de Memória Operária e Popular (Cemop), e pesquisadora do tema da gestão operária. “Estamos vivendo um momento angustiante. A gente sempre sofreu ataques, desde o começo, mas tem momentos em que eles se concentram, e este é um deles. Estamos discutindo uma campanha daqui até o final do ano para divulgar que os ataques estão ficando mais sérios e que os apoiadores têm que estar alertas porque não sabemos o que vai acontecer”, aponta.
Atualmente, são dois ataques principais: uma máquina – uma das Injetoras Semeardo – vai a leilão virtual no mês de outubro, para tentar cobrir uma dívida de mais de R$ 40 mil relativa a um processo de 1998, da gestão patronal. Outro, ainda mais grave, é um pedido de penhora de 50% do faturamento total da fábrica, o que inviabilizaria completamente a produção. Segundo Josiane, a Flaskô tem um faturamento bruto que gira em torno de R$ 600 mil por mês. Metade desse valor é destinado à compra de matéria-prima, o restante é dividido entre gastos, como energia, e a folha de pagamento. “São movimentos para fechar a fábrica, e eles têm consciência disso”, pontua.
Segundo o informe jurídico do advogado Alexandre Mandl publicado no fanzine Chão de Fábrica – um dos instrumentos de comunicação da Flaskô – nenhum lance para a máquina foi feito na primeira fase do leilão, que prossegue até o dia 31 de outubro. A intenção agora é convencer a Justiça a pensar a fábrica “com todo o significado social que tem e, por isso, buscar solução para os 200 processos existentes em Sumaré, e não um processo em si”.
A situação se complica porque os antigos patrões deixaram uma dívida avaliada em R$110 milhões, sendo que 70% são de impostos com o poder público, e a Justiça cobra dos trabalhadores ao invés de procurar aqueles que deixaram o rombo. A gestão operária paga direitos trabalhistas de ex-funcionários que não tinham seus direitos assegurados. Para efeitos de cobrança, os trabalhadores na gestão da fábrica são reconhecidos, mas para a negociação das dívidas, não.
Estatização
Com base na contradição envolvida na questão das dívidas, a proposta dos trabalhadores é a estatização. Essa bandeira surgiu na ocupação da Cipla – que também é do grupo Holding Brasil – que ocorreu em 2002. Nesse ano, trabalhadores da Cipla e da Interfibra, depois de greve de oito dias cobrando o pagamento imediato dos salários atrasados e dos direitos não pagos, decidem ocupar as fábricas e retomar a produção. O empresário Luís Batschauer concordou em passar “o comando administrativo e operacional” das fábricas para a gestão dos trabalhadores.
No entanto, passou junto suas dívidas, de mais de R$ 500 milhões. Os trabalhadores, reunidos em um Conselho Administrativo Unificado, passaram a cobrar que a empresa fosse expropriada, como uma forma de o governo cobrar dos patrões as dívidas com os cofres públicos. Em junho de 2003, fazem a I Caravana a Brasília, cobrando a “estatização para salvar 1070 empregos”, já incluídos os 70 da Flaskô, que estava na iminência de fechar. No dia 12, acontece a ocupação da fábrica em Sumaré.
“A fábrica deve ser de propriedade pública, é nesse sentido a estatização. Praticamente todo o patrimônio está penhorado em função de dívidas, a maioria com os governos, estadual, federal e municipal. O governo não precisaria investir para estatizar essa fábrica. Ao expropriar, deveria cobrar dos donos que fossem pagas as dívidas, ele estaria retomando os bens, sanando as dívidas com os ativos, ativos que estão gerando empregos, lazer, moradia…”, explica Josiane, que participou de um grupo responsável por formular uma emenda à Lei 4132, de 1962, que define os casos de desapropriação por interesse social. A proposta é uma mudança no artigo 2º da lei, acrescentando o seguinte inciso como característica de interesse social: “O aproveitamento produtivo de empresas abandonadas ou falidas que passaram a ser geridas por seus funcionários, sob qualquer modalidade de autogestão”.
“Esse instrumento de desapropriação é utilizado pelo poder público o tempo todo; para fazer obras, viadutos. Mas cria também uma possibilidade com o mesmo caráter, que inclui a modalidade de interesse social, que permite a desapropriação não apenas por interesse do Estado, mas por interesse social. Queremos incluir uma emenda que fala da demanda de aproveitamento produtivo de empresas abandonadas ou falidas”, explica Josiane.
Esse modelo se assemelha ao que ocorre na Argentina, país que tem cerca de 200 fábricas recuperadas, incluindo empreendimentos como padarias, açougues, hotéis.
Conselho de fábrica
Há 23 anos trabalhando na Flaskô, Eurico Rocha de Oliveira Filho chama o período anterior à ocupação de “patronal”. Ele explica a diferença: “aqui não tem patrão pra ficar pegando no pé, para começar. Tem mais liberdade para trabalhar. Tem que ter assembleia, reunião de conselho… Na patronal, você só trabalha, não sabe de nada. Só recebe o pagamento e olhe lá”. Giovani Carlos da Silva trabalha na área de expedição, carregamento e recebimento há oito anos, desde a ocupação. “Aqui a gente não trabalha sob a pressão dos patrões, cada um faz o seu serviço, não é pressionado a trabalhar pro patrão”.
Eurico, 23 anos de Flaskô: “aqui não tem patrão para pegar no pé” |
A forma de organização é o conselho de fábrica, com assembleias que acontecem ao menos uma vez por mês, mas podem ser convocadas a qualquer momento. Já o conselho é composto por 11 membros, com eleição anual. Todos os setores – os três turnos da produção, segurança, predial, mobilização, ferramentaria e administrativo – elegem representantes.
30 horas semanais
Foi o conselho de fábrica, em diálogo na assembleia, que programou a reformulação da jornada de trabalho. Josiane Lombardi, do Cemop, conta que a primeira mudança aconteceu em 2004, quando a jornada foi reduzida de 44 para 40 horas semanais, deixando o sábado livre. Em 2006, houve a redução para 30 horas, sem diminuição de salários. Feita com o apoio da Cipla, que já havia passado por esse processo, a produção foi reorganizada e foi possível manter a produtividade. Uma das medidas foi a eliminação de um dos turnos de produção – das 18h à meia-noite – responsável por um alto consumo de energia.
Outra conquista da fábrica sob controle dos trabalhadores é a queda no número de lesões por movimentos repetitivos. “Não teve mais ninguém afastado com LER desde que a fábrica foi ocupada”, ressalta Josiane Lombardi, que pesquisou as experiências da Cipla, Interfibra, Flaskô e Zanon (fábrica recuperada argentina) em sua tese de doutorado defendida na USP.