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Cena de O som ao redor: luta espinhosa contra blockbusters e comédias televisivas nacionais
– Foto: Divulgação
Maria do Rosário Caetano,
de São Paulo (SP)
“Com o nome cinema pernambucano, a luta de classes volta ao cinema brasileiro”. Esta constatação, feita pelo ensaísta e professor da USP Jean-Claude Bernardet, está registrada na revista Teorema, editada em Porto Alegre por um grupo de intelectuais, professores universitários e críticos.
Bernardet, autor de livros seminais, como Brasil em Tempo de Cinema (1966, estudo sobre os principais filmes do Cinema Novo), refere-se a um conjunto de filmes realizados em Recife nos últimos anos. Entre eles, vale destacar Um Lugar ao Sol e Doméstica, ambos de Gabriel Mascaro, Vigias, de Marcelo Lordello, e – principalmente – O Som ao Redor, primeiro longa ficcional de Kleber Mendonça. Depois de uma série de curtas (destaque para Eletrodoméstica e Recife Frio) e do longa documental Crítico, Kleber, de 44 anos, doze deles dedicados à crítica cinematográfica, realizou um dos filmes mais comentados e premiados do país. Exibido em dezenas de festivais mundo afora (Prêmio da Crítica Internacional, em Roterdã, e integrante da lista dos melhores do ano, do crítico A.O. Scott, no New York Times), o filme foi reconhecido também em casa (nos festivais de Gramado, Rio e São Paulo).
O Som ao Redor chegou aos cinemas com missão espinhosa: conquistar o público brasileiro, acomodado aos blockbusters e às comédias televisivas nacionais, rebatizadas pelo cineasta Guilherme de Almeida Prado de “globochanchadas”. Se conseguir mobilizar público significativo, o filme de Kleber Mendonça romperá barreira que drena os caminhos do cinema de baixo orçamento (o filme custou apenas R$1,8 milhão) e lançamento restrito. O Som ao Redor estreou em apenas 13 salas, número insignificante se comparado aos 1.228 cinemas ocupados por mais um filme da cinessérie dos vampiros light (Amanhecer – Parte 2).
Ao referir-se a estas produções vitimadas pela falta de espectadores, Bernardet recorreu à polêmica expressão “filmes irrelevantes”, cunhada pelo cineasta Eduardo Escorel. Ou seja, evocou realizações cinematográficas, majoritárias no cinema brasileiro, que não conseguem, por razões de mercado, dialogar com seu público potencial.
O Brasil lança em média 80 filmes nacionais por ano. Os títulos internacionais aqui lançados são três ou quatro vezes mais numerosos. E oriundos, em sua maioria absoluta, dos EUA (que ficam com média de 80% do número total dos mais de 120 milhões de ingressos vendidos).
Pernambuco tem sido (fora Rio e São Paulo) o estado que mais produz filmes no Brasil. E algumas das produções pernambucanas conseguiram romper a barreira dos 100 mil espectadores, uma façanha para um filme de baixo (ou médio) orçamento, lançado por pequenas distribuidoras (com mínimo investimento em publicidade) e em poucas salas. Neste quadro, destacaram-se Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, visto por 100 mil espectadores; Amarelo Manga, de Claudio Assis, que vendeu 140 mil ingressos, e Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes (130 mil espectadores).
Quantos espectadores O Som ao Redor mobilizará ao término de sua trajetória por todos os estados brasileiros, iniciada em apenas três capitais (São Paulo, Rio e Recife)? Só o tempo dirá. Este filme se constituirá, caso consiga transformar-se em sucesso de bilheteria, em estimulante paradigma.
Não se pode (nem se deve) medir a relevância de um filme apenas por seu êxito de bilheteria nas salas de cinema. Afinal, O Som ao Redor terá, ainda, muitas vitrines para expandir sua difusão: os cineclubes, o DVD, a TV por assinatura, a TV aberta, as novas mídias digitais. Pode (pois tem qualidades para isto) ganhar relevância similar à de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967). O cineasta Cacá Diegues costuma dizer que Terra em Transe segue em cartaz há mais de quatro décadas, pois continua sendo exibido, motivando novos estudos e causando polêmica. Bilheteria não é tudo. Mas, é óbvio, quanto mais espectadores um filme de notáveis qualidades temáticas e artísticas mobilizar, mais relevante ele se tornará.
Especulação imobiliária
O que faz de O Som ao Redor um filme tão significativo e tão bom? A resposta mais evidente nos leva à capacidade que o diretor Kleber Mendonça teve de somar ousadia e inventividade estética a uma acurada abordagem de temas essenciais à compreensão de nosso tempo (a luta de classes, a especulação imobiliária, a violência urbana e rural, o racismo velado à brasileira, o consumismo desenfreado).
Como os grandes filmes, O Som ao Redor não é um experimento formalista para iniciados. Ao contrário. Ele abre portas para o diálogo com o público, ao estabelecer vigoroso corpo-a-corpo com seu tempo histórico, sem esquecer os afetos e sensibilidades de seus personagens. Que, aliás, são muitos.
A narrativa se compõe com fragmentos de histórias de moradores de uma rua de classe média do Recife. Nela residem um senhor de engenho (Senhor Francisco, interpretado por W.J. Solha), que expandiu seus negócios ao lucrativo ramo da especulação imobiliária, um filho (amante de uma festa regada a chorinho, mas amedrontado pela violência urbana), dois netos (um que trabalha alugando apartamentos da família, e outro, estudante universitário, que arromba carros). Reside, na mesma rua, uma família nucleada em uma mãe estressada (interpretada pela atriz paraense Maeve Jinkings), que não suporta os latidos de um cão de guarda.
O senhor Francisco e seus descendentes, mais a família atormentada pelo cachorro constituem os principais personagens do núcleo dos bem-nascidos. Na base da pirâmide social estão os empregados domésticos (em relação freyriano afetiva com os patrões) e os “vendedores de segurança”. Na liderança deste grupo está Clodoaldo, magistralmente interpretado por Irandhir Santos. Ele chega à rua recifense oferecendo, de porta em porta, “segurança privada”. E o faz com dois ou três ajudantes, um deles com um olho furado.
Em O Invasor (2001), Beto Brant e seu roteirista Marçal Aquino mostram um intruso (oriundo do lumpemproletariado paulistano) que “invade” a vida de empresários metidos em falcatruas (imobiliárias). Este tipo de “invasão” se dá também em O Som ao Redor. Os “vigilantes privados” se imiscuem na vida dos moradores, a quem bisbilhotarão sem descanso.
A única “reviravolta” da trama se dará no embate entre o senhor de engenho/especulador imobiliário e o vigia Clodoaldo e seu irmão (em interpretação suave de Nanego Lira). Este confronto de classe se desenvolverá de forma surpreendente e, por mais paradoxal que pareça, velada. Afinal, a ação que ganhará relevo no impactante desfecho do filme se concentra (no plano das imagens) em mais um ardil da incansável dona de casa estressada contra o barulhento cão de guarda. Um dos finais mais arrebatadores do cinema brasileiro.
Filme de cinéfilo
Kleber Mendonça, depois de três décadas de cinefilia e doze anos de crítica cinematográfica, sabe que centenas de filmes estão impressos indelevelmente em sua memória. Ele mesmo cita produções que o influenciaram. Como Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984), com o qual dialogou ao criar a abertura do filme: uma sucessão de fotos (em preto e branco) de engenhos outrora senhoriais, que dominam a paisagem do poderoso estado de Pernambuco desde os tempos em que era uma promissora Capitania Hereditária. Há outras fontes de diálogo.
O Som ao Redor, ao captar o medo dos moradores dos grandes centros urbanos, soma cinema social com cinema de gênero. O resultado só encontra similar em um filme brasileiro recente (e tão bom quanto O Som ao Redor): Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra. Como o pernambucano Kleber Mendonça, a dupla paulistana soma cinema social (a partir das densas pesquisas que embasaram A Comédia do Trabalho, do grupo teatral Cia. do Latão) com “horror” metafísico. Que fique claro: nenhum dos dois projetos tem nada a ver com filmes de terror explícito, alimentados por sustos brutais e jorros espetaculares de sangue.
Kleber disse, em debate público, no Festival de Gramado, que O Som ao Redor é irmão de Trabalhar Cansa (2011). Disse também que gosta muito do cinema de John Carpenter (um dos mestres do horror) e de Elia Suleiman (uma espécie de Chaplin palestino). Há que se acrescentar, também, diálogo (mesmo que involuntário) com Short Cuts – Cenas da Vida, de Robert Altman. Além de somar vidas fragmentadas numa Los Angeles urbana e caótica, Altman recorre à “tempestade” de insetos (e helicópteros), de proporções bíblicas, que cai sobre a cidade. O efeito é quase surrealista. No filme pernambucano, dois momentos saem do registro realista: o banho de cachoeira, no Engenho, cuja água cristalina transforma-se em sangue, e um “arrastão” de moleques de rua, que perturba o sonho da filha da mulher estressada pelo cachorro.
Quem for ver o filme do pernambucano constatará que além das qualidades estéticas e temáticas já ressaltadas, ele brilha em outro quesito: o som. Kleber, auxiliado pelo trilheiro sergipano, o craque DJ Dolores (de Narradores de Javé e Os Últimos Cangaceiros), construiu densa camada de sonoridades. Sonoridades urbanas que potencializam de forma arrebatadora este denso painel de estórias de pessoas apavoradas-atormentadas por medo potencial. E que revalorizam, como Fernanda Torres e Walter Salles haviam feito com Vapor Barato (em Terra Estrangeira), a belíssima Charles Anjo 45, de Jorge Benjor.