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Na Entrevista o jornalista analisa as mudanças em marcha na região, elogia o processo argentino e remarca o papel dos Estados (e suas dificuldades) na tarefa de limitar a concentração de meios e indústrias culturais.
De que modo impacta o avanço tecnológico nos setores comunicacional e cultural?
A mudança digital permitiu a confluência de todas as linguagens, usos e expressões, bem como a fusão de dados, sons e imagens numa linguagem digital única. Este impacto não cessa de manifestar-se em todas as áreas da sociedade e em todos os campos do conhecimento. Vivemos uma época em que a estética, a educação, o mercado e os campos científico, cultural, monetário e social estão sob uma influência completamente desproporcional das tecnologias. Os benefícios são, a meu juízo, indiscutíveis: permitem mais contato, mais intercâmbio, mais avanços científicos, mais expressões culturais e estéticas de uma forma sem precedentes. Porém, há ademais toda uma coleção de problemas.
Como? Quais?
Mantêm-se um abismo entre conectados e desconectados. A sociedade continua sendo extremamente desigual e injusta. As diferenças no usufruto tecnológico acentuam as diferenças entre as classes, os grupos, as comunidades. E isso tem a ver com a hegemonia.
Que fatores devem acompanhar a expansão da digitalização para reverter este cenário desigual, tendo em conta que a tecnologia não pode fazê-lo sozinha?
O capitalismo é uma fábrica de desigualdades, não promove uma distribuição de vantagens e benefícios de maneira igualitária. O próprio modo de produção é, por definição, um modo de diferenças, de desigualdades, de oportunidades totalmente apartadas da harmonia das classes, dos grupos, das pessoas. Sob a influência da ideologia do modo de produção capitalista é muito difícil que a tecnologia se encaminhe para uma conjuntura que facilite e estimule uma divisão mais igualitária dos benefícios e das possibilidades da tecnologia. Porém a expansão do consumo das tecnologias se faz sob o signo das desigualdades, porque, embora se esteja ampliando o mercado tecnológico comunicacional básico, o mesmo se dá de maneira estratificada.
Em que se manifesta concretamente essa distribuição injusta?
Muita gente está utilizando computadores: nas escolas primárias e secundárias, nas empresas, nas organizações não governamentais. Há uma expansão da base de consumo e das possibilidades de uso. Mas, esta expansão se desenrola de maneira desigual, porque há um tipo de tecnologia para os pobres e um tipo de tecnologia para os ricos.
Num cenário de alta concentração econômica como o atual, qual deveria ser o papel do Estado e que tipo de valoração se deve fazer da política para que a expansão tecnológica não contribua a uma apropriação desigual?
O papel do Estado é fundamental, não o digo somente como constatação teórica. Tenho viajado com freqüência pela América Latina, e publiquei inclusive no Brasil um livro intitulado A batalha da mídia, um trabalho de investigação sobre as novas políticas de comunicação dos governos progressistas latino-americanos. Inclui o governo de Chávez na Venezuela, de Evo Morales na Bolívia, de Nestor e Cristina Kirchner na Argentina, Tabaré Vázquez e Pepe Mujica no Uruguai, Michele Bachelet no Chile, Daniel Ortega na Nicarágua e – com algumas dúvidas – o presidente Lula no Brasil. Na maioria dos países, os governos estão conscientes da necessidade de desenvolver políticas eletrônicas de comunicação para valorizar o paradigma das redes. O Estado precisa fazer inversões – cada vez maiores, a meu juízo – no desenvolvimento da informação cidadã, a qual tenha como ponto de partida o fortalecimento das redes sem finalidades lucrativas. A maioria dos presidentes progressistas da América Latina tem consciência da necessidade urgente de inversões públicas em tecnologias direcionadas para o meio social, para fomentar as formas de comunicação e expressão cultural por fora da lógica hegemônica das indústrias culturais. Parece-me que o papel do Estado não deve anular a iniciativa privada. Não se trata de instituir ditaduras estatais que impeçam a existência de outras visões de mundo.
Por que faz esta declaração?
Quando defendemos o pluralismo, isso se refere a ambos os lados. O outro mundo e a outra comunicação que desejo viver inclui outros olhares sobre a vida social, cultural, econômica e política. O problema é que a dramática concentração dos meios de comunicação e das indústrias culturais constitui um obstáculo, uma barreira para a emergência de outras vozes na arena social.
Existe algum uso da tecnologia que não esteja subordinado à lógica mercantil por parte de atores não ligados ao mercado?
Este é um ponto que me mobiliza. Está se ampliando o uso alternativo e contra-hegemônico e, portanto, social, comunitário, cooperativo e colaborativo. Podemos observá-lo nas formas de apropriação das tecnologias digitais por fora da lógica comercial da mídia, das formas de controle ideológico e cultural das indústrias culturais. Claro que esta utilização não tem um caráter de massa, nem uma penetração harmônica e ampla em todas as classes, sociedades, países e povos. Mas isso não deve desviar-nos para uma forma de pensamento dogmático que deixe de reconhecer que há possibilidades imprevistas. Uma das consequências mais positivas e estimulantes deste processo de apropriação é que se incrementa a cooperação entre coletivos de periodistas, artistas plásticos, estudantes de diversos graus, grupos de trabalhadores ou desempregados, os quais utilizam, sobretudo, a Internet como centro gravitacional de suas manifestações e relações.
Neste cenário mercantil que você descreve, que capacidade de aproveitamento desta ferramenta tem os meios alternativos?
Está se construindo progressivamente um tipo de comunicação alternativa, mais aguerrida, combativa e estimulante do que a de décadas passadas. Os periódicos alternativos enfrentaram sempre uma dificuldade com os custos do papel, de impressão, de distribuição. Em troca, com as novas formas de comunicação eletrônica, sobretudo o ecossistema da Internet, não se depende mais disso. Com as novas formas de expressão, de comunicação, de interação e participação coletiva, se produziu uma espécie de quebra na relação com os usuários, com os consumidores, com os cidadãos. Essas novas formas estão em processo de formação, discussão e experimentação. É um processo que está ocorrendo fora do campo de visão de cada um de nós.
Em seu livro Mutações do visível você mencionava que é preciso “ganhar a batalha dos fluxos informativos”. Crê que essas possibilidades para a produção e circulação de conteúdos alternativos se vêem, a partir do discurso hegemônico, em termos de ameaça?
Não creio que a palavra correta seja ameaça, porém há uma preocupação crescente nos grandes meios comunicacionais. Não me parece que seja uma ameaça perigosa, no sentido de que possa acontecer algo que mude tudo, porque a lógica mercantil das indústrias culturais e comunicacionais por parte das grandes empresas não me parece que vá ser avassalada pela comunicação digital contra-hegemônica, alternativa, comunitária. No entanto, me parece que existe a possibilidade de um crescimento dessas novas formas de expressão, interação e intercâmbios que vão conviver com a hegemonia da mídia. Isso me parece uma grande novidade. Em décadas passadas, a comunicação alternativa – não digital senão impressa – era um tio de comunicação sedimentada, dirigida a militantes, a pessoas com maior consciência, a grupos organizados. Abrem-se hoje possibilidades para praticamente todos os setores da vida social, incluindo outras formas de organização, participação e construção.
Sem embargo, as indústrias culturais continuam fixando a agenda de temas, instalando as principais preocupações da sociedade.
Claro que continuam marcando, por isso não me parece que a palavra correta seja ameaça.
Sem embargo, você fala de convivência. Creio que tal convivência possa ter algum tipo de impacto na agenda política?
Creio que é uma expectativa perturbadora, porque, por um lado, há uma série de evidências de maior intercâmbio, maior contato, mais expressão e mais civilização. Porém, é cedo para avaliar se essas novas expressões vão canalizar-se em idéias e práticas mais ativas. Há uma diferença entre sociabilidade em rede e participação social e política em rede. Necessitamos ter uma percepção muito clara de que nem todas as expressões de sociabilidade em rede são manifestações ativas da cidadania. Há grupos políticos, sociais e comunitários muito organizados e mobilizados que utilizam as tecnologias digitais e, em especial, das redes com a finalidade de reivindicar a mudança social, a luta política aberta. Minha preocupação é se a sociabilidade em rede vai evolucionar para novas formas de consciência sobre o social, o político, o cultural, o comunitário.
A partir de que lhe surge essa preocupação?
Creio que a forma de organização da sociabilidade em rede se encaminha para uma direção mais relacionada com as questões existenciais ou espirituais, do que para o campo das expressões políticas e sociais mais organizadas e combativas. Parece-me muito interessante que se ampliem os canais de sociabilidade, de intercâmbio dos afetos, das manifestações espirituais e religiosas em rede. Porém, outra coisa é reconhecer a expressão dos afetos, das crenças religiosas e de aspirações existenciais como a única forma de usufruto das tecnologias.
Você mencionou o caso de ouros países da América Latina. Como vê o que está sucedendo na Argentina em relação com o setor comunicacional?
Creio que a nova Lei de Serviços Audiovisuais da Argentina deve ser um orgulho para todos os argentinos e para todos os latino-americanos. Esta legislação – conheço todas as que estão em vigência na América Latina – é a mais avançada do continente. Tem uma noção muito clara dos três setores que devem atuar no campo dos sistemas de comunicação: o campo público, o campo privado comercial e o campo social. Este equilíbrio entre os três setores é algo revolucionário, porque sempre os sistemas de comunicação – não só da Argentina, senão de todos os países latino-americanos – se caracterizaram por um desequilíbrio brutal que favoreceu historicamente o setor comercial da mídia. Temos, pois, um avanço com consequências de longo prazo.
De que modo impactará a nova legislação?
Será uma comunicação mais plural, mais complexa, mais participativa. Com a possibilidade de expressão de várias vozes ao mesmo tempo. Os diferentes setores sociais podem manifestar-se de maneira mito mais rica e estimulante e me parece que a interferência do poder estatal é fundamental para reequilibrar os marcos regulatórios dos meios de concessão pública. Veja, as licenças de rádio e televisão pertencem à sociedade, aos povos e não às empresas de comunicação que são concessionárias temporais. Os canais não pertencem ao Grupo Clarín, O Globo, El Mercúrio e demais grupos de comunicação latino-americanos, geralmente sob o controle de famílias que se reproduzem no comando da mídia, de geração em geração.
Um aspecto chave da lei que está em debate na Argentina é o não reconhecimento dos direitos adquiridos. Até que ponto deve avançar a regulação política num cenário como o argentino para obter uma real desconcentração do setor?
As pressões sobre a lei argentina de meios são similares às pressões que há na Venezuela, Bolívia e Equador. Em todas as partes, os grupos midiáticos estão desenvolvendo violentas campanhas contra as transformações, as mudanças nos marcos legais e nas leis, isto é, das normas que regulam a radiodifusão. As licenças de radio e televisão são “as jóias da coroa” dos grupos midiáticos. Então, essas campanhas tem como centro de sua argumentação o fato de que a liberdade de expressão está sendo agredida, violentada pelas novas regulamentações. É um argumento falso que oculta o que sempre tem sido ocultado pelos grupos da mídia. Os grupos da mídia latino-americana se consideram fora de qualquer tipo de controle, sobretudo do controle público democrático.
Por que crê que se instalou esse imaginário da liberdade de expressão na América Latina?
Ele tem a ver com a idéia mistificadora de que os meios representem a vontade geral e sejam, portanto, a esfera que tem condições de produzir uma espécie de síntese das aspirações sociais e coletivas. Então, se têm qualificação para ser a esfera de síntese do social, não há necessidade de nenhuma submissão a regulamentos, normas, leis. Porque são uma instância que tem relação direta com o povo, com os desejos das sociedades. Claro que tudo isso é uma estratégia argumentativa para ocultar as formas de domínio e hegemonia na formação das mentalidades e do imaginário social.
Que balanços faz do que se está produzindo na região em matéria de comunicação?
Creio que este processo de mudanças na comunicação latino-americana, sob a iniciativa oportuna dos governos, é um processo que põe a comunicação no centro do campo de batalhas pela hegemonia cultural e política. Neste campo de batalha os dois lados têm consciência de que não se podem deixar de lado as lutas pelo controle da opinião pública e do imaginário social. Este processo de ações em cadeia, que se estendem desde Caracas a Buenos Aires, é um processo articulado, muito bem pensado, muito competente do ponto de vista das articulações discursivas e que tem uma diferença crucial em relação com o campo do Estado e da sociedade civil.
Em que sentido se dá essa diferença?
Estes grupos detêm os canais de convencimento que são os diários, as rádios, as televisoras e os Estados não, com alguma exceção, como o caso da Venezuela que tem quatro redes estatais de televisão. Se os Estados e as organizações sociais não têm essa potência de persuasão, de conquista dos corações e da mente do público, temos um processo muito desequilibrado de formação de opinião pública – a meu juízo – sumamente perverso.
Por quê?
Porque o ideal que todos nós defendemos da liberdade de expressão deve ser o de uma liberdade generalizada e não pode concentrar-se em poucas mãos que definam o que é e o que não é liberdade de expressão. Se o governo do presidente Chávez contém erros, tem excessos, bem, vamos pressionar sobre as medidas do presidente Chávez, ele não é Deus. Porém, as mudanças profundas da comunicação venezuelana sob os dez anos do governo de Chávez são significativas.
Pode mencionar alguma dessas mudanças?
No canal educativo e cultural Vive TV, criado pelo presidente Chávez em 2003, todas as agendas informativas das programações culturais são definidas em assembléias de bairros pelo povo. Os executivos, os diretores, os periodistas, o grupo dirigente de Vive TV, vai aos bairros somente para coordenar, organizar as assembléias de bairro em que as comunidades indicam quais são os problemas, as ênfases informativas, que tipo de programação cultural as pessoas desejam. Na Argentina, outro motivo de orgulho para a sociedade latino-americana é o canal Encuentro [Encontro], uma experiência fabulosa de mudança das lógicas informativas, culturais e científicas. Com isso se modificou a concepção de um canal educativo, cultural e científico. Até o momento, só há algumas inserções da programação de Encuentro na televisão pública, no Canal 7, já que a maioria do público só acede a Encuentro nos pacotes de TV paga. Estou mencionando duas experiências de canais educativos, culturais e científicos, criados por governos progressistas, que mudaram a lógica perversa da mercantilização da informação e dos bens culturais.
Participa de algum projeto comunicacional, além de seu trabalho acadêmico na matéria?
Depois de viajar pela América Latina, estou hoje coordenando outro projeto latino-americano de comunicação contra-hegemônico e alternativo. Creio que a palavra esperança não é coisa inútil, é uma palavra de mobilização, de chamado, porque há coisas concretas que se estão construindo em distintos países da América Latina, em direções totalmente diferentes do cenário midiático e cultural que predomina. Em vários lugares da América Latina outra comunicação é possível. Esta é uma palavra de construção que não somente figure num papel, nas bandeiras políticas e retóricas, Vive TV ou Encuentro têm as tecnologias digitais como seus insumos, como recursos indispensáveis. É necessário um pensamento dialético entre os problemas, os bloqueios, as desigualdades e as injustiças de usos e acessos ao tecnológico. Ao mesmo tempo, há necessidade de uma avaliação muito sensível das possibilidades e apropriações, dos usos cidadãos e culturais, sem uma finalidade mercantil, como sucede hoje em nosso continente. Creio que a síntese dessa dialética é a palavra esperança.