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O DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), o centro de tortura mais temido pelos ativistas de esquerda no final dos
anos 60 e na década de 70, pode até ter deixado de existir, mas os serviços de inteligência do Exército, da Marinha, Aeronáutica e das polícias Civil, Militar e Federal não foram extintos com a queda da ditadura.
Apesar de os arquivos da ditadura militar ainda não terem sido abertos, documentos confidenciais encontrados pela reportagem da Caros Amigos revelam que as Forças Armadas continuaram agindo de maneira integrada na investigação da esquerda nos anos 90. Partidos políticos, movimentos sociais e até mesmo ativistas estrangeiros estiveram na mira dos agentes da repressão.
A reportagem da revista encontrou documentos inéditos no meio de quase 20 mil documentos distribuídos em 454 pastas que repousam empilhadas nas prateleiras de aço do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Os relatórios da repressão estavam junto com os demais documentos do arquivo secreto da Divisão de Informações Sociais do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo, órgão de inteligência que substituiu o antigo Dops (Departamento de Ordem Política e Social), no monitoramento político no período pós-redemocratização.
A documentação encontrada revela que, além do monitoramento, havia também a troca de informações entre as três Forças Armadas e as polícias Civil, Militar e Federal. Esse compartilhamento de informações entre as Forças Armadas e os órgãos policiais foi o que possibilitou o encontro desses documentos confidenciais e que estavam sob a guarda do setor de espionagem da Polícia Civil de São Paulo. Em 1999, veio à tona que o órgão que sucedeu o Dops mantinha o monitoramento político. O material foi repassado ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, mas só foi disponibilizado para a consulta pública em fevereiro deste ano.
Apesar de conter elementos cruciais que revelam o modo de agir do setor de espionagem
militar no monitoramento à esquerda brasileira e internacional, a documentação é apenas uma pontinha no imenso iceberg que poderá ser revelado quando os arquivos da repressão forem de fato abertos. Nem tudo foi repassado. É possível verificar hiatos temporais significativos no acervo da espionagem do pós-Dops.
Sindicalismo
A Central Única dos Trabalhadores (CUT), maior central sindical do país, foi investigada pelo Exército, pela Marinha e Aeronáutica nos anos 90. Relatórios confidenciais das três Forças Armadas revelam a preocupação dos militares com a atuação da CUT.
O informe do Exército 247/91, de 26 de setembro de 1991, relata a decisão da Central de disputar a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), tomada durante o 4º congresso da entidade. “Essa decisão coloca em jogo a luta pela liderança de três mil sindicatos e vinte e duas federações da categoria”, alerta o agente, que aproveita para informar que durante o congresso “os trabalhadores rurais realizaram um ato de protesto contra a violência no campo e a concentração de terras no Brasil.”
O relato evidencia um claro viés ideológico na investigação. O responsável pelo texto sobre a CUT utiliza aspas quando se refere ao golpe militar. “AVELINO GANZER, membro da Executiva Nacional da CUT e ex-presidente do Sindicato Rural (sic) de Santarém/PA, lembrou as últimas estatísticas das mortes no campo. Destacou que do “golpe militar” até hoje foram registradas 1.630 mortes em conflito por terra e, dos 24 processos concluídos, apenas três mandantes foram condenados.” O relatório traz ainda parte do discurso de Ganzer. “Dramaticamente, nos últimos cinco anos, 53 dirigentes foram mortos em aproximadamente 687 conflitos, finalizou”, ressalta o araponga.
O documento informa que o relatório deve ser repassado para a Comissão Naval, o IV Comar (Comando Aéreo Regional), a Polícia Militar do Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil de São Paulo. No informe consta ainda que a origem dessas informações partiram do 4º BIB (Batalhão de infantaria Blindado) do Exército . A difusão anterior também é informada. Foi feita pelo Comando Militar do Sudeste (Exército), órgão que substituiu o DOI-Codi no período pós-democratização.
Já a Marinha em seu informe 0130/20/1991, de 25 de setembro de 1991, discorre sobre o Suplemento nº 28 do Departamento de Estudos Socioeconômicos e Políticos (Desep), da CUT. “O SUPLEMENTO, que tem o apoio da CUT Estadual de São Paulo, reúne textos e análises sobre a conjuntura e as tendências do movimento sindical, tem como objetivo principal a elaboração de análises, estudos e pesquisas para subsidiar a atuação da CUT e para estimular o debate e a crítica sobre a evolução das lutas sindicais”, afirma o texto.
O nome dos membros que compõem a Direção Executiva do Desep, sua coordenação e equipe constam desse informe. À época o Desep era chefiado pelo metalúrgico Oswaldo Bargas, que viria a ocupar o cargo de secretário de Relações do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego no primeiro mandato do presidente Lula.
A força naval anexa às informações cópia do Suplemento, para que seja compartilhada com o Comando do 1º Distrito Naval, localizado no Rio de Janeiro, Comando Militar do Sudeste (Exército), IV Comar (Aeronáutica), a Superintendência Regional do Departamento da Polícia Federal no Estado de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social da Policial Civil de São Paulo, Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) e a Polícia Militar do Estado de São Paulo. A origem desse documento, segundo informações contidas no relatório, partiu da Comissão Naval em São Paulo.
O comunicado 008/A-2/IV Comar, de 02 de outubro de 1991, da Aeronáutica trata das teses do 6º Congresso Estadual da CUT São Paulo e da programação do Seminário Internacional sobre Socialismo que aconteceria no Instituto Cajamar, instituição ligada ao Partido dos Trabalhadores. “Remetemos para conhecimento as cópias xerox constantes do anexo.” A origem das informações, segundo o relatório, é da Embraer, a empresa da aeronáutica que fabrica aviões. Assim como o Exército e a Marinha, a Aeronáutica compartilha suas informações. O Comando Militar do Sudeste, a Comissão Naval em São Paulo, o Departamento da Polícia Federal em São Paulo, a Polícia Militar de São Paulo, o Departamento de Comunicação Social e o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil de São Paulo constam como órgãos para os quais o informe deve ser repassado. Envio de publicações sindicais é o título do comunicado encaminhado pela Aeronáutica.
Os relatórios das três Forças Armadas vêm acompanhados, sempre, por carimbos de confidencial e fichar e arquivar. O da Aeronáutica tem ainda o carimbo do Ministério da Aeronáutica – IV Comar – 2ª Seção, o da Marinha, o da Comissão Naval em São Paulo; o do Exército sobre a CUT apresenta carimbo da 2ª Seção da 2ª Divisão do EMG (Estado Maior Geral). Os documentos do Exército e da Aeronáutica vêm acompanhados ainda por outro carimbo, que informa: “o destinatário é o responsável pela manutenção do sigilo deste documento (art. 12 do RSAS – Dec. 79.099 de 05 JAN 77)”. Trata-se do Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos Sigilosos fixado durante a ditadura militar.
A atuação da Corrente Sindical Classista (CSC), ligada ao PC do B, também foi monitorada pelo Exército no 4º Congresso Nacional da CUT. “A CORRENTE SINDICAL CLASSITA (CSC) composta por sindicalistas do PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PC do B) participou do IV CONGRESSO DA CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES (IV CONCUT), realizado em SÃO PAULO/CAPITAL), no período de 04 a 08 SET 91, com uma delegação de cerca de 213 representantes eleitos em quase todos os estados do País.”
O relato de 30 de setembro de 1991 e que teve origem no Comando Militar do Sudeste, informa ainda que o número de delegados da CSC presentes ao congresso permitiu à entidade se tornar a terceira força na entidade, atrás apenas da Articulação e da CUT pela base. “Este fato foi muito comemorado por militantes do Partido como altamente positivo considerando que, a CSC foi fundada a menos de 3 anos e filiou-se à CUT há pouco mais de 1 ano (MAR 90)… Conseguiu, ainda, eleger ALOISIO SÉRGIO ROCHA BARROSO, coordenador nacional da CSC e ANTONIO RENILDO SANTANA DE SOUZA para membros da Direção Nacional da CUT.”
Os militares também se preocupavam em produzir relatórios mensais intitulados Panorama Mensal do Movimento Sindical. Esses relatos faziam uma análise das atividades sindicais que se desenvolveram ao longo do mês. Caros Amigos encontrou dois desses relatórios. Eles não estão com o timbre de nenhuma das Forças Armadas, embora sejam redigidos no mesmo tipo de papel (textura, coloração, tamanho). A primeira e a última página aparecem cortadas, uma tinta preta parecida com a de um pincel atômico esconde provavelmente a origem do material.
Lúcia Rodrigues é jornalista
luciarodrigues@carosamigos.com.br
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