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Atual vice-presidente, Amado Boudou, não é visto como potencial sucessor de Cristina Kirchner, por enquanto (Foto:Pablo Busti/RBA)
Mesmo após um ano conturbado, com considerável perda de aprovação popular, a presidenta da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, segue com uma oposição incapaz de fazer sombra ao governo. Vitoriosa em 2011 com um dos resultados mais expressivos da história democrática do país, a titular da Casa Rosada vê do outro lado do front as mesmas figuras que não conseguiram lhe impor dificuldades em outros momentos.
“A impossibilidade de que Cristina Kirchner tenha um novo mandato provoca uma interrogação bastante complexa dentro das próprias filas do peronismo e nas filas da coalizão que apoia o governo”, afirma o analista Edgardo Mocca, professor titular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.
Em entrevista à RBA, ele avalia que a oposição fica muito atrelada a uma agenda montada pelos grupos conservadores da mídia argentina, em um discurso que não chega à população. São “pré-caprilistas”, afirma, em referência a Henrique Capriles, adversário de Hugo Chávez este ano na disputa pela presidência da Venezuela, finalmente impondo alguma dificuldade ao líder sul-americano. Com este quatro interno, é de se esperar turbulências dentro do Partido Justicialista, de Cristina, à medida que se aproxime a disputa sucessória, em 2015.
A conversa foi feita na véspera do 7D, data-chave na aplicação da Lei de Meios Audiovisuais, sancionada em 2009 e que visa a promover a diversificação dos meios de comunicação. “Obviamente este não é um caminho de rosas, nem um futuro simples”, avalia Mocca, que comemora a tentativa da Casa Rosada de tocar em uma questão fundamental da democracia argentina, que é a subordinação da política ao poder econômico.
Confira a seguir trechos da conversa.
Que avanços podemos esperar desde que se conclua este processo da Lei de Meios, com a divisão do espectro em três pedaços iguais?
Este é um processo que tem algum grau de execução, embora ainda falte muito para concluir. Há um algo chave que é a presença forte de vozes públicas não estatais, ou seja, comunitárias, sindicais, juvenis, femininas, agrárias, dos povos originários, de universidades. Este é um futuro que obviamente não é imediato, não é mágico, não é vertiginoso. Mas é a criação de um horizonte para um sistema de comunicação social na Argentina que estabeleça um poder de emissão e de produção de conteúdo por parte de setores que até agora não estavam presentes.
Por outro lado, o fato de que se tenha um setor privado com total competitividade e melhor manejo das licenças vai facilitar uma melhor circulação da palavra. Há promissórios horizontes em termos de ocupação, de permitir que todo um setor dos trabalhadores vinculado direta ou indiretamente ao setor de comunicação tenha melhores condições. E aí não é só uma conquista, mas também um desafio. Porque não será simples empoderar setores sociais para que exerçam com plenitude estes direitos que se incorporam. Há bloqueios de ordem empresarial, de iniciativa, de organização, de capacitação no terreno da comunicação que seguramente vai levar a um processo intenso, longo e muito exigente.
Politicamente seria um problema para o governo esperar a decisão definitiva, em vez de jogar tanta força no 7D?
Não. É evidente que a data, em grande medida pela orientação adotada pelo governo, adquire um caráter muito forte. Mas estamos próximos de uma decisão definitiva. Seria realmente preocupante que demorasse uma sentença definitiva do juiz Horácio Alfonso porque estão dadas todas as condições. É uma lei que já tem um nível de conversação, um grau de mobilização social e uma discussão parlamentar. Estamos às vésperas de uma decisão judicial a favor da constitucionalidade da lei. Terminou-se, eu diria, a etapa do direito cautelar, ou seja, a ideia de que um recurso justo e democrático, como é a liminar, possa se converter em um circuito de sistemática obstrução da lei.
A forma como se trataram estes temas em termos de justiça cria condições para avanço no sentido de ir colocando normas sobre as liminares. Elas devem estar cada vez mais concentradas na garantia de direitos individuais, e não podem dar lugar a uma indústria profissional de obstrução deliberada de decisões do Estado.
Como o senhor analisa a argumentação do Clarín de que está havendo denegação de justiça?
É um argumento fraudulento. Esta lei foi aprovada há três anos. O Clarín demorou nove meses, uma vez que obteve a liminar, em produzir o passo seguinte, que é a apresentação de sua posição. Seguramente da parte do governo também houve algumas improcedências, mas está muito claro que o grupo Clarín tentou ganhar tempo. Se uma lei que prevê um processo de adequação que será levado a cabo em um ano, e já se passaram três anos apenas nos meandros do Judiciário, estamos falando praticamente de uma legislação. Isso significa, na prática, que o Judiciário reinterpretou uma decisão do Congresso argentino ao passar de um para três anos o prazo estipulado para o desinvestimento.
A denegação de justiça neste caso é para a sociedade argentina porque está retardando um prazo que a lei fixou claramente de 2009 para 2010. Estamos nas vésperas de 2013 e ainda não se pôde executar. A denegação é para todos os que demandamos uma comunicação democrática, não monopólica.
Abriu-se uma frente de debate sobre a democratização do Judiciário após as decisões favoráveis ao Clarín.
Todo mundo sabe que na Justiça argentina funcionam muitas redes de interesses com os setores mais concentrados da economia. Para olhá-lo desde outra perspectiva, perguntaria quantos argentinos que se veem afetados por determinada lei conseguem retardar em três anos a aplicação da mesma. Se eu tentar alguma coisa parecida acho que será difícil.
O Grupo Clarín está dando provas, ao longo de sua história, de que aprovou leis com nome e sobrenome. Isso, que parece tão confuso e tão inexplicável, é simplesmente a revelação de um estado de coisas na democracia argentina que obviamente é uma pendência. Toda a questão judicial, que vem da ditadura, segue aí. Uma parte dos juízes postergou o quanto pôde o julgamento dos responsáveis pelo terrorismo de Estado. De modo que falar do Poder Judiciário argentino como uma espécie de lugar celestial, de competência, igualdade e imparcialidade, é forçado. É tentar mostrar um Poder Executivo avançando sobre o Poder Judiciário, quando se trata justamente de o Executivo defender a aplicação de uma lei votada.
O Poder Judiciário não tem funções legislativas, não pode debater as leis. Mas abriu nos últimos meses uma instância em que parece que estamos discutindo a lei. Mas a lei já se aprovou, já se sancionou. Há uma pendência sobre a transparência e o Poder Judiciário na Argentina. Isso não se resolverá por decreto. É evidente que a democracia deve ser defendida. Tudo o que se possa fazer em matéria de legislação, de reformas favoráveis à democracia está sempre colocado entre parênteses se não se tem um Judiciário livre das amarras econômicas. Há quem entenda o Judiciário como um lugar de enlace com os setores privilegiados da sociedade.
De maneira geral, como se avalia este primeiro ano do segundo mandato?
Foi um ano bastante complexo. E que tem a ver com temas conjunturais. A Argentina está vivendo, como todo mundo, o contexto de uma situação crítica, que vem de muitos dos países centrais e tem grande implicação sobre o funcionamento de nossa economia. Tivemos uma interrupção do crescimento, dificuldades para defender a balança comercial.
E o governo sofreu uma pressão muito forte do ponto de vista econômico-financeiro. É um país em que as manobras especulativas produziram situações muito graves de instabilidade em muitos momentos da história. Isso é cíclico. A Argentina se saiu até agora de forma muito inteligente. Não sem custo porque algumas medidas que se tem de tomar em defesa das divisas argentinas, como a retenção dos dólares, produz insatisfação em uma parte dos assalariados, os melhores remunerados.
A outra questão problemática da agenda do governo são as dificuldades de autosucessão. A impossibilidade de que Cristina Kirchner tenha um novo mandato provoca uma interrogação bastante complexa dentro das próprias filas do peronismo e nas filas da coalizão que apoia o governo. Está colocada a incógnita de como poderia continuar-se a aplicação de um projeto político diferente a tudo que veio antes em uma situação de centralidade na figura da presidenta. Não havendo possibilidade de nova reeleição, facilita-se o surgimento de dissidências internas dentro do Justicialismo que vão dar a pauta da política imediata.
E a oposição?
Não acredito na iminência de uma força claramente opositora e alternativa. Não há liderança, estrutura ou projeto que possa projetar uma mudança do partido que tem o governo. A grande questão para os que apoiam Cristina é encontrar uma fórmula sucessória que evite uma forte disputa interna. Há gente que aceita a liderança de Cristina, mas que não aceita que Cristina escolha seu sucessor.
O modelo Lula-Dilma não é de aplicação fácil na Argentina. Os setores mais tradicionais do peronismo medem os tempos para uma discussão sobre a sucessão que tem muito a ver com os tempos políticos. A candidatura de algum governador mais independente frente à conduta de Cristina não seria uma sucessão natural, uma mera continuidade. Seria uma interrogação sobre o projeto político em curso.
Algumas medidas foram tomadas com claro grau de improviso, provocando mal-estar na população, de modo que se formou um ano complicado. Não um ano catastrófico, como pinta a direita, manipulando pesquisas. Porque as sondagens, ainda que mostrem uma queda na aprovação popular da presidenta, em qualquer cenário em que Cristina seja candidata segue sendo amplamente majoritária sua votação. É um problema de erosão, produto de um ano muito complexo, de uma dificuldade sucessória e de falhas de gestão. Foi um ano em que houve um problema muito grave na linha de trem urbano, foi o ano máximo da colocação em cena da Lei de Meios, o que recrudesce o conflito. Um governo que não tivesse nenhum ônus com tudo isso não existiria.
Quando se olha hoje para a oposição, que se manifesta especialmente pelo Clarín, nota-se que são os mesmos que em 2011 sofreram uma imensa derrota. Por quê?
O problema de liderança é um problema de projetos, não de caras. Então, estruturalmente há um problema aqui que a índole do governo, de 2003 para cá, é o tipo de política pública que se desenvolveu, que cria uma dificultade para fazer uma oposição orgânica e um projeto orgânico alternativo que não seja, de alguma maneira, uma volta ao paradigma neoliberal. É muito difícil fazer uma oposição de esquerda a um governo que produziu profundas mudanças na distribuição de renda, no exercício da soberania, na integração regional.
Um projeto político não pode ser julgado por uma intenção, mas pelos resultados concretos da política. Voltar ao imaginário neoliberal, em um momento em que o mundo está com uma profunda interrogação sobre a continuidade deste tipo de esquemas, que são espaços profundamente antipolíticos e antidemocráticos porque colocam na mão da tecnocracia, da burocracia financeira, temas centrais para a democracia.
Outro grande problema é o que chamo de matriz midiático-cêntrica da oposição. A oposição não consegue uma matriz de desenvolvimento político, programático, social, que não dependa do livreto elaborado pelos grandes meios de comunicação. E este ano, depois de uma derrota, como você disse, imensa, a verdade é que esta matriz midiático-cêntrica estava esgotada. Mas a verdade é que estranhamente ela se mantém e se aprofunda. Praticamente não há líder que possa criar recursos próprios.
De manhã sai um assunto na capa do La Nación ou do Clarín, e à tarde os principais cabeças da oposição saem a interpretar esta capa. Qual o problema? Que este discurso, dos setores oligopólicos da comunicação, é o discurso dos setores mais recalcitrantes, é um discurso que tem dificuldade para apelar a uma grande massa, a gente que votou em Cristina e vê problemas, mas que entende que muitas coisas estão bem.
A oposição argentina é pré-caprilista, não aprendeu ainda a escolha da oposição venezuelana, que construiu uma candidatura que finalmente perdeu, mas que desafiou seriamente o governo de Hugo Chávez ao dizer que há coisas boas, bem feitas, mas que há muitas coisas que não gostam e que precisam ser superadas.