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Joana Tavares da Redação
“Nós somos mais de 500 famílias de agricultores que vivíamos nessa área (Alto Uruguai) como pequenos arrendatários, posseiros da área indígena, peões, diaristas, meeiros, agregados, parceiros, etc. Desse jeito já não conseguíamos mais viver, pois traz muita insegurança e muitas vezes não se tem o que comer. Na cidade não queremos ir, porque não sabemos trabalhar lá. Nos criamos no trabalho na lavoura e é isto que sabemos fazer.”
Assim começa o primeiro Boletim Informativo da Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra, e assim começa parte importante da história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Ali, em 1981, no entrocamento das cidades de Ronda Alta e Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, acontece a ocupação de terra que é considerada a semente da organização do MST. As famílias ocuparam um trecho da estrada para reivindicar a posse da terra. Exigiam a desapropriação de latifúndios na própria região, e não em projetos de colonização em outros estados.
Novas pessoas foram se juntando. Aos poucos, o acampamento da Encruzilhada Natalino foi se tornando referência – tanto para os trabalhadores como para a repressão. O então presidente , o general João Batista Figueiredo, enviou um de seus quadros de maior confiança para cortar a mobilização popular. O coronel Curió – Sebastião Rodrigues de Moura, membro do Conselho de Segurança Nacional, o mesmo que desmobilizou a Guerrilha do Araguaia – cercou a região onde as famílias se instalaram com seus barracos de “armação de bambu, cobertos de plásticos, lonas e, grande parte, apenas de capim”, conforme descrição do boletim. As duas extremidades da estrada foram fechadas, impedindo a circulação.
“A porteira se abre”
Para romper o cerco, uma das inciativas foi a criação do Boletim, feito na capital do estado pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos e Comissão Pastoral da Terra do Rio Grande do Sul. “A gente mandava bilhetes para Porto Alegre e o pessoal de lá escrevia o que estava acontecendo fora do acampamento. Assim, o boletim cumpria uma dupla finalidade:informava os amigos da situação que nós vivíamos e repassava as informações para quem estava confi nado lá dentro”, lembra Maria Izabel Grein, militante do MST que estava na ocupação e hoje compõe o setor de educação no Paraná.
O Boletim chegou, por exemplo, até Adnor Bicalho Vieira, o Parafuso, que atuava na Comissão Pastoral da Terra de Santa Catarina. “Aquilo era uma denúncia do que acontecia com nosso povo. Foi uma maneira de ficarmos sabendo que havia diferentes formas de organização. Quando as coisas ficam isoladas, ninguém sabe. Aquele boletim motivou a organização da classe trabalhadora”, acredita.
Vladimir Caleffi Araujo, jornalista que acompanhou o boletim desde o início e foi seu editor até 1986, afi rma que o informativo surgiu de uma necessidade de divulgar a luta dos acampados e a extensa rede de solidariedade formada a partir dela.
“As informações eram recolhidas de diversas formas e repassadas para um comitê de apoio que se formou em Porto Alegre. E nós tínhamos esta tarefa de juntar esta massa de informações e divulgá- las. Este boletim, no início rudimentar, passou a ser editado e acabou transformando-se no boletim dos sem terra, numa espécie de porta-voz dos acampados”, lembra Vladimir, que atualmente dirige o Centro de Pesquisa e Documentação da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
O Boletim não circulava com periodicidade fixa, variava de semanal para quinzenal. O número de páginas também mudava de acordo com os temas tratados. A tiragem girava em torno de 700 exemplares. Além de retratar a situação das famílias do acampamento, trazia dados da solidariedade recebida e de outras lutas no Brasil. Em julho de 1982, o boletim anuncia que passaria a ser regional, “como o órgão de divulgação de suas lutas em cinco estados: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul”.
Em novembro de 1983, circula uma “edição histórica”, com cinco mil exemplares. “A porteira se abre”, anuncia a manchete, acompanhada da tradicional cruz com os panos simbolizando as crianças mortas no acampamento, por negligência do Estado. A edição comemorava a aquisição de terras para os colonos, na região de Ronda Alta. Hoje, parte das famílias está assentada na fazenda Anonni. Em 9,2 mil hectares vivem 450 famílias, em sete comunidades. Há ginásios de esportes, uma escola estadual, duas municipais e uma escola técnica de agroecologia.