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Sem emissão de posse ou qualquer amparo legal, seguranças armados e máquinas da construtora Brasal invadiram o Santuário dos Pajés – Território Indígena (TI) localizado no Setor Noroeste de Brasília (DF) – na manhã desta quinta-feira (13).
Indígenas e apoiadores tentaram impedir a entrada do maquinário, como já fizeram outras vezes nos últimos meses, mas foram atacados de forma covarde e violenta pelos cerca de 30 seguranças contratados pela construtora – que alega ter comprado as terras da Terracap (Companhia Imobiliária de Brasília) e pretende erguer na área um residencial de alto padrão.
Em poucas horas, um trecho de cerrado, a cerca de 100 metros das habitações indígenas, já estava completamente destruído pelos tratores e cercado com metros e mais metros de arame farpado. Caminhões retiravam toneladas de terras do TI e trabalhadores armavam barracões, faziam medições. Animais refugiavam-se em outras paragens.
Entre os feridos, duas mulheres arremessadas para longe por seguranças, um apoiador da resistência indígena desacordado depois de ser dominado por uma “chave de braço” e Xoá Fulni-ô, 26 anos, morador de uma das aldeias do Santuário, espancado por cerca de 20 seguranças, amarrado e entregue para a Polícia Militar (PM) – que o jogou no camburão de uma das viaturas.
Xoá conseguiu escapar e na mata buscou refúgio. Os demais agredidos pelos capangas da Brasal fizeram boletins de ocorrência e exames de corpo de delito. Tudo foi filmado e fotografado.
“Eram muitos seguranças fazendo uma barreira para nos impedir de interceptar os tratores que entravam destruindo o cerrado. Começaram a bater muito na gente e em coisa de 10 minutos cercaram tudo. A polícia chegou depois e ficaram entre nós”, explica Tâmara Jacinto, militante social e apoiadora dos indígenas.
Ela relata que Xoá, depois de espancado e amarrado, ficou isolado e ninguém conseguiu ter acesso a ele. “Outro indígena tentou passar pela barreira e também apanhou. Uma das meninas estava no chão sendo chutada pelos seguranças e um dos trabalhadores da obra interferiu para que eles parassem de bater nela”, relata Tâmara.
Veja o vídeo através do link abaixo;
http://www.youtube.com/watch?v=5g0PUFwko0M&feature=player_embedded
Depredação criminosa
A área depredada e cercada pelas máquinas da Brasal é acesso direto ao Santuário, além de única estrada aberta.
“Por aqui não pode passar porque é propriedade particular”, dizia um dos seguranças para quem fazia menção de passar pelo trecho.
Dessa forma, o ir e vir dos integrantes da comunidade, bem como de seus apoiadores, ficou e permanece impedido. Tristeza e indignação misturavam-se aos movimentos de resistência, que por essas horas já tomava de assalto o Ministério da Justiça, com um grupo reivindicando audiência, e na Procuradoria Geral da República (PGR).
Ednalva Tuxá vive no Santuário desde os sete anos de idade. Vai fazer 40 agora em outubro. Tem dois filhos: Tainan, 21 anos, e Twairan, 19 anos, ambos nascidos e criados nas terras sagradas do território. Escorada na cerca de arame farpado, olhava as árvores centenárias serem derrubadas indiscriminadamente.
“É muito triste ver tudo isso. Principalmente porque estão destruindo a natureza. Estamos na luta e há muito tempo vemos a cidade chegar sobre a gente e a Funai não tomar nenhuma atitude”, diz Ednalva Tuxá. Ela relata que funcionários das construtoras invadem sistematicamente a área com ameaças e ofensas morais. O medo de ataques é antigo e já mobiliza rondas noturnas há meses.
O Santuário, no entanto, não é defendido apenas pelos indígenas que lá residem. Graciana Atikum estuda Engenharia Florestal na Universidade de Brasília (UNB) e no território encontra espaço para a realização dos rituais. “Aqui representa nossa casa. Venho para cá com outros parentes, fazemos nossas comidas, dançamos nosso toré”, diz.
O povo Atikum vive na região dos municípios de Carnaubeira da Penha e Salgueiro, em Pernambuco (PE), e é do Nordeste que os povos que lutam pelo Santuário vieram para cerrar fileiras entre os migrantes da construção da Capital Federal. Eram, portanto, nordestinos, candangos, mas, sobretudo, indígenas.
O golpe dos quatro hectares
Awá-Mirim Tupinambá, integrante da comunidade que vive no território, faz uma leitura das invasões ao Santuário que remontam realidades vistas em comunidades indígenas de todo o país. A Fundação Nacional do Índio (Funai) foi obrigada pela Justiça a fazer uma estudo para a formação de um Grupo de Trabalho (GT) visando a demarcação da área.
No último mês de agosto, um relatório completo foi entregue pelos antropólogos contratados atestando a ancestralidade do Santuário – inclusive com estudos botânicos detalhados que revelam plantas trazidas pelos indígenas. “A Funai ainda não se posicionou, mas sabemos que vai surgir um parecer do órgão contrário ao relatório. Mas isso não começa agora. Desde a década de 1990 que a Funai não toma posição e permite essa escalada da violência”, defende Awá.
O indígena explica que à época, um relatório, construído entre 1991 e 1996, apontou que os indígenas ali chegaram em 1957. Os Fulni-ô foram os primeiros e passaram a viver sob as árvores em acampamentos provisórios. Uma década depois, lideranças como Santie Fulni-ô se estabeleceram no Santuário com a construção de residências fixas.
“Todo o Noroeste era esse território, mas a cidade avançou e nesse relatório colocamos os quase 50 hectares com as áreas de interesse da identidade indígena no Santuário. Então dentro disso temos sítios arqueológicos, áreas de reza, enterros de pertences dos pajés, cemitérios, sambaquis. A área era maior, mas o avanço da cidade destruiu o que era prova da tradicionalidade”, aponta Awá.
Os 50 hectares foi o reivindicado então pelos indígenas. A questão é que a Funai não deu nenhum encaminhamento e, segundo os indígenas, tal relatório se perdeu dentro do órgão indigenista. O tempo passou e os interesses imobiliários sobre o Noroeste aumentaram. Até os últimos meses, onde novos argumentos foram buscados pelos empresários que agora coordenam ações de invasão.
Levando em conta as ocas, as roças tradicionais e demais indícios de ocupação tradicional, tudo fica dentro de quatro hectares. “E é esse o argumento que a Terracap e as construtoras estão utilizando para invadir o território. Dizem que é dos índios os quatro e o restante dos hectares não. Querem um acordo conosco nesses quatro, mas sabemos que um território indígena é muito mais que o local onde está a moradia”, revela Awá.
Para o indígena, toda mata ao redor no raio determinado como de interesse da comunidade está dentro do território. É lá que os pajés fazem seus rituais, recolhem as plantas medicinais e realizam o contato com a Mãe Terra – conforme a cosmologia dos povos. Awá aponta que dentro dos 50 hectares está uma área não revelada usada pelos pajés Fulni-ô para rituais que não podem ser compartilhados.
Em verdade, conforme os indígenas e advogados apoiadores, a jogada com os quatro hectares é um golpe das construtoras e da Terracap. A comunidade aceita viver em quatro hectares e em dois ou três anos passarão por novo processo de expulsão: na área está prevista, de acordo com projeto de residencial das construtoras, a construção de ruas e vias.
“Há também uma discriminação com os índios do Nordeste e com os índios urbanos, por parte da Funai, porque alegam que eles já perderam sua cultura, não são índios. Essa é a prova de que é mentira e não fazemos acordo. Queremos nossa terra”, encerra.
Resistência segue
Com o apoio do movimento estudantil (da UNB e Faculdade Projeção), indigenistas (Conselho Indigenista Missionário – Cimi) e militantes de organizações sociais (caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST), os integrantes da comunidade do Santuário, composta por nove famílias, estiveram em audiência no Ministério da Justiça e Secretaria da Presidência da República.
A intenção era denunciar o que estava acontecendo. “Porque é uma ação contra os indígenas de todo o país. Não é só aqui no Santuário, mas acontece na Bahia com os Pataxó e Tupinambá, com o meu povo Fulni-ô em Pernambuco, com os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, com os Kaingang no Sul”, aponta o pajé Santie Fulni-ô.
Além da denúncia, reivindicar atitudes da Funai e do governo federal. A resistência no Santuário e as reuniões com os organismos públicos seguiram na sexta-feira (14).