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Jaqueline Dias, o marido e os quatro filhos conheceram a vida na rua pela primeira vez. E não pretendem voltar (Fotos: Danilo Ramos/Rede Brasil Atual)
Felipe Sena tem uma filha, dois netos, nenhuma casa. Aos 35 anos, foi pai há 19, avô há quatro e está viúvo há três. Mudou-se do Rio de Janeiro para São Paulo no mesmo ano em que perdeu a esposa, pensou em voltar, mas ficou. Tem nome de jogador, camisa do Flamengo, a carteira assinada como porteiro de prédio e um salário de R$ 728. “É osso”, diz. “Gasta R$ 400 com aluguel, paga água, luz, as fraldas das crianças. Não sobra para comer.”
A história de Felipe é difícil de resumir em poucas linhas, mas há pontos comuns com as de todos os outros moradores de um alojamento improvisado desde domingo (12) no Bom Retiro, no centro da capital paulista. Sem dinheiro para o preço de aluguel crescente na cidade, atingida pela valorização imobiliária, as pessoas deixaram as casas, uniram-se a movimentos de luta por moradia, ocuparam imóveis, foram expulsas pela administração de Gilberto Kassab (PSD), amargaram a vida na rua e agora enfrentam a incerteza do abrigo provisório.
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No domingo, quebrando uma prática de não dialogar, a prefeitura negociou com os sem-teto que acampavam na calçada da avenida São João, no centro, para finalmente dar cumprimento a uma liminar judicial que a obrigava a fornecer atendimento habitacional ao grupo. Os cálculos oficiais são de 334 famílias desalojadas de prédios abandonados na esquina das avenidas Ipiranga e São João e na rua Conselheiro Nébias.
O acordo é de que as pessoas permanecerão no local por um mês, prazo curto para que se encontre uma solução, ainda mais levando em conta o histórico de uma administração que, em 2011, entregou seis mil imóveis populares frente a um déficit de 800 mil famílias. “Estou muito ansiosa porque tiraram a gente de lá e a gente não tem noção do que vai ser de hoje para amanhã”, diz Jaqueline Dias Batista, mãe de quatro filhos, o mais novo com dois anos.
Ela e todos os sem-teto ainda se recuperam da noite que continua sendo o assunto central nas rodas de conversa no novo abrigo. Na madrugada de sexta (10) para sábado (11), uma tempestade transformou a “moradia” na calçada em um pesadelo. Como a prefeitura havia proibido a colocação de tapumes que visavam a proteger os moradores, a solução era ficar em pé segurando as crianças nos braços. “A noite não acabava nunca”, diz a militante de primeira viagem, que não aguentou o tranco do aluguel. “Apesar das dificuldades, ficar na rua foi uma maneira de descobrir o quanto sou forte.”
Mais experiente no assunto, Jussamara Leonor Manuel, uma das coordenadoras do movimento, prefere não sofrer por antecipação. “A gente vive um dia de cada vez. Espero que possam resolver para ter uma vida ainda mais normal. Todos nós temos trabalho, família, amigos, nossas atividades normais. Só precisamos de um espaço para desenvolver o local individual de cada um aqui.”
Uma das possibilidades aceitas é de que as famílias se vejam atendidas pelo auxílio-aluguel, que se tornou a praxe da gestão Kassab para casos de moradia. O valor (R$ 300), porém, raras vezes é suficiente para um mercado encarecido como o paulistano, e, ao término da concessão do benefício, volta-se à situação inicial, de não ter onde morar. “Vai ver o prédio em que a gente estava. A prefeitura fecha e não faz nada com aquilo. E nisso vai ficar”, lamenta Cláudia Rodrigues Teles, que morou em uma pensão no bairro da Luz, apelidada de “cracolândia”, pela qual tinha de desembolsar R$ 600 por um quarto para cinco pessoas. “Se não resolver, vamos outra vez para a rua.”
O abrigo na rua Cristina Tomás, próximo à quadra da escola de samba Gaviões da Fiel, é uma construção nos moldes dos alojamentos para operários em obras. Do lado de fora há árvores que refrescam o ambiente. Dentro, mulheres estão em uma sala quente com colchões espalhados na qual dormem também as crianças; em outra ficam os homens. A prefeitura limitou a entrada de aparelhos elétricos como forma de economizar e, com isso, todos os moradores, um número incerto entre 100 e 200 pessoas, dispõem de apenas uma geladeira. O resultado é que a preparação de alimentos na cozinha coletiva, outra exigência da administração municipal, fica restrita a poucos ingredientes, e água gelada se torna bem escasso sob um calor de verão.
“Esse pessoal está aqui porque não tem para onde ir. Morou na São João porque não tem para onde ir. Então, a gente não sabe o que vai fazer se a prefeitura não resolver. Vamos todos voltar para a rua?”, questiona Carmen da Silva Ferreira, coordenadora da Frente de Luta por Moradia. Inicialmente, a prefeitura insistiu que os sem-teto deveriam ser encaminhados a albergues, estruturas construídas para a população em situação de rua e que promovem a separação das famílias. O movimento, porém, recusa esse tipo de atendimento por considerar que se trata de outro perfil.
Em nota divulgada no último domingo, a administração Kassab ironiza esta visão. O comunicado informa que, ainda que tenha cadastrado 334 famílias, apenas 23 pessoas permaneceram no alojamento do Bom Retiro. “Os líderes dos movimentos dos sem-teto explicaram que a maioria resolveu retornar para seus locais de origem (suas casas, favelas, casas de parentes e amigos). Portanto, só sobraram, para ser removidos, aqueles que efetivamente não tinham para onde ir, ou seja, os moradores em situação de rua”, defende.
Carmen Ferreira rebate o argumento e diz que enquanto a gestão municipal se nega a dar solução definitiva ao problema, cresce um problema que pode estourar. “A prefeitura está completamente enganada. A cada dia comete um equívoco maior com a única finalidade de desgastar o movimento.”