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Tairiny Ingrid Sá Ribeiro Santos, de 21 anos, pretende realizar este ano o sonho de passar no vestibular. Aluna de um cursinho popular para negros e trabalhadores, a jovem vai prestar o curso de Filosofia e mira principalmente as universidades federais. A motivação para conquistar uma vaga aumentou ainda mais depois que soube da vigência da lei das cotas sociais e raciais, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 29 de agosto. Agora, por lei, no mínimo metade das vagas de universidades e institutos federais deve ser reservada para estudantes que tenham cursado todo o ensino médio em escolas públicas. Dessas, 25% podem ser distribuídas entre negros, pardos ou indígenas, de acordo com a proporção dessas populações em cada Estado.
A nova lei ganhou respaldo jurídico com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em abril, considerou improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, ajuizada pelo Partido Democratas (DEM), e julgou constitucional a política de cotas etnicorraciais adotada pela Universidade de Brasília (UnB). Na época, como agora, as cotas causaram uma chiadeira sem limites entre as classes média e alta, que falaram em ataque à meritocracia. Por serem estudantes “menos qualificados”, segundo eles, os cotistas devem rebaixar a qualidade do conhecimento produzido.
Negra, Tairiny vai reivindicar a cota racial. Segundo ela, a lei de cotas é uma reparação aos danos sociais e morais proporcionados pela discriminação. “A gente foi muito castigado durante muito tempo”, afirma a vestibulanda, acrescentando que espera encontrar preconceito por parte dos colegas universitários, caso passe no vestibular. “O estudante que entra por cotas sofre um pouco com isso. Mas estou tranquila. A vida já está cheia de preconceitos e eu quero muito entrar na faculdade. Estou lutando para isso”, afirma.
Hoje de um total de 59 universidades federais, 27 delas não têm nenhum tipo de cota, seja racial ou social. E das que adotam o sistema de cotas 25 têm políticas afirmativas para estudantes negros e indígenas. Reivindicado por parte da população, o sistema de cotas não universaliza o acesso ao ensino superior, que continua restrito e concorrencial, mas é uma tentativa de reparação histórica a negros e povos originários, vítimas da segregação etnicorracial. É também um facilitador do acesso à graduação de uma geração inteira de estudantes que sofreram com a péssima qualidade do ensino nas escolas públicas. Pela nova lei, as instituições têm até o ano 2016 para se adaptarem às novas regras, o que deve significar 127 mil vagas destinadas a estudantes com estes perfis. Certamente, universidades ainda amplamente frequentadas por brancos da classe média irão alcançar uma nova composição social e étnica.
Vestibulandos comentam sobre a nova lei de cotas – Fotos: Arquivo pessoal
De cara nova
O novo perfil social da Universidade pode, inclusive, estimular um novo tipo de conhecimento, mais afinado com as demandas sociais. Em geral, os cotistas realizam de forma voluntária maior prestação de serviços às comunidades pobres. Nos Estados Unidos, por exemplo, médicos provenientes do sistema de cotas atendem duas vezes mais, como voluntários, comunidades pobres. “Certamente com a modificação do universo dos discentes, o centro das preocupações das universidades seria outro. O Brasil periférico seria o centro das preocupações, o verdadeiro Brasil passaria a ser analisado”, defende o professor Marcus Orione, um dos impulsionadores da formação da Frente Pró Cotas da Universidade de São Paulo (USP) e docente da Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Segundo ele, o mérito não é medido pela habilidade do candidato saber prestar provas de um tipo de vestibular já caduco, mas tem a ver com a potencialidade de geração de conhecimento de cada estudante. E reforça: quanto mais plural a Universidade, mais plural o conhecimento gerado. “O saber gerado não pode apenas manter vantagens para grupos específicos. Mas isso será sempre reproduzido se a clientela das universidades, em especial nos cursos de maior procura, se mantiver sendo a elite branca, proveniente em especial da classe média”.
Mesmo considerado o argumento meritocrático unicamente pela aprovação dos concorridos vestibulares, não há diferenças no desempenho de estudantes cotistas e não cotistas, de acordo com o professor. “Os alunos negros e outros de segmentos mais pobres não apresentam rendimentos menos significativos do que o dos candidatos brancos durante o curso superior, ainda que ingressando por programas de cotas. Estes números estão presentes na experiência norte-americana, mas se encontram também na realidade brasileira, como na Universidade do Estado do Rio de Janeiro”, afirma.
Para a vestibulanda Jordana Machado, de 26 anos, a aprovação das cotas é uma medida paliativa, mas justa diante da deplorável situação do ensino nas escolas públicas brasileiras. Ela busca o curso de Letras e vai reivindicar cota social. “As cotas reforçam a separação das classes e não vão atingir a causa do problema na educação que é a falta de investimento e o devido respeito. Mas essas deficiências não serão sanadas em pouco tempo. Esperar que as melhorias se desenvolvam sem colocar pra funcionar ações afirmativas é perder mais tempo ainda”, argumenta a estudante, que sempre estudou em escolas públicas e atualmente concilia estudo e trabalho. “Hoje pago com esforço as mensalidades de um cursinho onde aprendo o que já deveria saber”.
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