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A Comissão Nacional da Verdade não é uma das 12 exigências da sentença emitida há um ano contra o Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas, na avaliação de especialistas e de um ex-ministro, podem ajudar no cumprimento dos parâmetros relativos à transição do país rumo à democracia.
“Não há Justiça sem informação”, argumenta Flávia Piovesan, professora de Direitos Humanos e Direito Constitucional da PUC de São Paulo. Ela tem a expectativa de que os dados levantados pelo colegiado, que deve começar a operar no primeiro semestre de 2012 com a função de apurar violações de direitos humanos cometidas pelo Estado, coloquem em novo patamar a possibilidade de julgamento dos colaboradores da ditadura (1964-85), uma das exigências formais da Corte. A professora, que também é colaboradora do Sistema Interamericano de Justiça, acredita que o conhecimento dos fatos exercerá um papel para a reparação individual das famílias, que terão a possibilidade de descobrir o paradeiro dos parentes assassinados, e também uma dimensão coletiva. “Nós, brasileiros, temos de passar por essa compreensão narrativa do que é nossa história, até para evitar a repetição do arbítrio.”
Sancionada em novembro pela presidenta Dilma Rousseff, a criação da Comissão da Verdade divide setores que acompanham o resgate da memória. O grupo terá dois anos para apurar as violações cometidas entre 1946 e 1988, intervalo entre duas constituições, mas se espera que o foco sejam os 21 anos compreendidos pela ditadura – 1964 a 1985. Entidades de ex-presos políticos e de familiares gostariam de garantir que a nomeação dos sete integrantes não fosse atribuição exclusiva da Presidência da República.
Os autores da ação apresentada à OEA manifestaram desejar a criação de um colegiado do gênero, mas expressaram preocupação à Corte Interamericana sobre o projeto então apresentado pelo governo Lula ao Legislativo. Aos familiares irritou ainda a posição da ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos, de fazer um preâmbulo falando sobre a Comissão da Verdade quando da publicação da sentença – em nota enviada à Rede Brasil Atual, publicada na íntegra abaixo, a criação do colegiado é novamente ressaltada pela secretaria. A publicação em página oficial do Estado é uma exigência da Corte. Os parágrafos introdutórios, não. “Fala sobre o que é importante para ela (Maria do Rosário), e retira o que é importante na sentença para os familiares e, sobretudo, para a Corte. A ministra precisa entender que o efeito reparatório é para as vítimas, e não para ela”, reclama Beatriz Affonso, diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil) para o Brasil.
A sentença da Corte Interamericana expôs apreço pela iniciativa de criação da Comissão da Verdade, mas manifestou que isso não resolve sua insatisfação com a demora do país em investigar, esclarecer e punir os crimes. “As atividades e informações que, eventualmente, recolha essa Comissão não substituem a obrigação do Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais, através dos processos judiciais penais”, aponta a condenação.
Algumas organizações chegaram a cobrar que o colegiado incluísse também a possibilidade de Justiça. Glenda Mezarobba, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) especializada em transição de regimes autoritários à democracia, considera que esta exigência não é possível dentro do ordenamento institucional brasileiro. “Se forem encontrados indícios ou provas de envolvimento de pessoas durante a Comissão da Verdade, esse material tem de ser encaminhado às autoridades competentes”, afirma. O texto sancionado pelo governo prevê que o relatório final, apresentado após dois anos de trabalho, seja direcionado ao Ministério Público Federal.
Para Paulo Vannuchi, ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a Comissão da Verdade fornecerá instrumentos importantes para a punição dos envolvidos na ditadura e dará a oportunidade de o Supremo Tribunal Federal (STF). Em abril de 2010, oito meses antes da decisão da Corte, a maioria dos ministros do órgão avaliou que a anistia se tratou de um acordo de amplos setores da sociedade e que, por isso, garantia a não punição de torturadores. “A democracia é um processo incessante, é a reinvenção permanente da política. Daqui a três anos a situação é outra.” Ele pondera, no entanto, que punir não significa necessariamente a condenação penal. “Pode haver, por exemplo, a publicação de uma relação dos nomes dos colaboradores da repressão.”
Beatriz Affonso rejeita a visão de que o STF vá reformar sua versão. “Não acho que de fato a Comissão da Verdade vá trazer grande diferença. Achar que a população vai estar tão favorável, vai pedir Justiça, isso não vai acontecer.”
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