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Durante algumas horas prosperou a ideia de que o reconhecimento da questão social envolvida na “cracolândia” é a grande chave para solucionar o problema (Fotos: Danilo Ramos. Rede Brasil Atual)
Debaixo de sol e chuva, a segunda edição do “Churrascão Diferenciado” chegou a lotar o final da rua Helvétia, próxima à Estação Júlio Prestes, área conhecida pelo consumo de crack no centro de São Paulo. Perto das 17h deste sábado (14), não se podia distinguir os ativistas dos movimentos sociais, os dependentes químicos e os curiosos que se aglomeravam em protesto contra a operação policial, alvo de críticas nas últimas duas semanas por conta do uso de armas não letais, da coleção de denúncias de abuso policial e da desconfiança em relação ao real interesse na ação.
Já a Polícia Militar – que realiza desde o dia 3 de janeiro rondas regulares a fim de coibir a formação de grupos de dependentes – se limitou a gravar imagens à distância, enquanto os grupos circulavam pela área. Nenhuma ocorrência foi registrada durante a realização do evento. Das mais de 2 mil pessoas que confirmaram presença pelo Facebook, cerca de 200 compareceram, o que é comum em manifestações deste tipo, já que a adesão por meio da rede social significa muito mais um apoio que o comparecimento em si.
“Queremos que eles (os policiais) olhem com dignidade para estas pessoas. Elas não estão usando o crack porque preferem usar. Há a exclusão e o preconceito”, ressaltou Anderson Lopez Miranda, coordenador do Movimento Nacional da População de Rua – um dos mais de 40 organizadores do evento -, enquanto Gilberto S., de 56 anos, esperava com ansiedade uma chance para falar. O homem, que relatou “andar de lá para cá” por causa do crack, foi categórico em sua afirmação. “Não adianta ação militar, porque eles expulsam uma cracolândia e se criam outras trinta por aí”, disse, reforçando que não há oferta para tratamento. Outros, como Gilberto, também participavam do churrasco. Momentos raros – ou inexistentes – na rotina daquele lugar. Aproveitaram também para comer e guardar comida para mais tarde. Uma fila se formava a cada minuto para que os lanches de pão com linguiça fossem preparados à beira da churrasqueira. Tudo foi organizado por meio de doações.
Com uma abordagem bem humorada, balões com frases como “Liberta São Paulo” foram soltos ao céu, dezenas de cartazes pregados à cerca que protege o terreno da Helvétia – também utilizada como esconderijo do fumo -, além de uma banda, que tocou todo o estilo de música. Alguns dos viciados dançavam junto aos ativistas. Em outro momento, um homem enrolado na bandeira nacional pediu a atenção do público para discursar. “O governo tem é que colocar cultura aqui. Se é para desocuparem (as casas do entorno), que construam um centro educativo”, frisou. Os policiais têm barrado a entrada de uma moradia em péssimo estado, invadida pelos dependentes. Apesar de estar lacrado, o local ainda recebia pessoas que se escondiam do tempo ruim e passavam a noite. Durante o evento, curiosos entraram na casa, sem advertências.
Para o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, o “churrascão” vai além do óbvio, de protestar e levantar cartazes, e atinge a questão da convivência da população com a realidade do centro da cidade. “Eu acredito que uma manifestação como esta é tudo o que a população não esperava. Isto aqui está sendo um sinal de que a sociedade muda, quando todo mundo puder comer junto”, afirmou. Lancellotti acompanha diariamente a situação dos moradores em situação de rua e dos dependentes químicos. Em uma ocasião, o padre afirma ter sido ameaçado com uma arma apontada por um policial militar, enquanto tentava proteger um rapaz da investida policial.
Ao final da tarde, quando alguns dependentes já voltavam a circular pelas ruas adjacentes, viam-se cachimbos de fumo, enquanto os policiais militares continuavam parados ao lado das viaturas, estacionadas nas calçadas próximas ao “churrascão”. Grupos se formaram na rua Barão de Piracicaba, próxima à Helvétia. Estranhando a reação atípica da PM, uma dependente temia um possível revide pela madrugada quando não houver movimento, que não seja o dos próprios moradores locais.
O princípio apoiado pelo padre Lancellotti vai ao encontro do propósito da organização do evento, de mostrar à população que os dependentes do crack são “gente como a gente”. Na primeira versão do “churrascão”, a reunião foi em frente a um shopping em Higienópolis, na região central, devido à resistência dos moradores do bairro quanto à construção de uma estação do metrô. O governador Geraldo Alckmin (PSDB), que já havia sinalizado desistência da construção, voltou atrás. A idéia desta edição é a mesma. “O povo (os dependentes) aqui sozinho não vai conseguir resistir”, ressaltou o deputado estadual Adriano Diogo (PT). “Que a inteligência da sociedade paulistana apareça e questione até onde o governo estadual vai com esta loucura”, criticou.
O comandante-geral da PM, Coronel Álvaro Camilo, afirmou na última sexta-feira (13) em entrevista que a operação continua por tempo indeterminado, e que “tudo está dentro da normalidade”. Alckmin, em passeio de carro pela região, também garantiu que as ações estão sob controle. As denúncias de abuso de autoridade e agressões físicas estão sendo acompanhadas pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e pelo Ministério Público.