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Realizada na ECA, discussão sobre as diretrizes curriculares nacionais dos cursos de Jornalismo e de Rádio, Televisão e Internet coloca em pauta os principais problemas enfrentados na formação de profissionais de comunicação social
SILVANA SALLES
Desde a década de 1990, a comunicação social vem enfrentando mudanças estruturais que alteraram desde a forma de se fazer um jornal impresso até a maneira como se organiza o mercado de trabalho de profissionais como radialistas e cineastas. Os avanços tecnológicos ligados à internet e à computação abriram novos campos de pesquisa e trabalho, mas também tiveram profundo impacto sobre a mídia tradicional. Num momento de mudança em que há poucas certezas sobre como se dará o trabalho nas áreas de comunicação social nos próximos anos, professores, pesquisadores, coordenadores de cursos de graduação e representantes de entidades de classe se reuniram no dia 14 de fevereiro na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP para debater as diretrizes curriculares de Jornalismo e de Rádio, TV e Internet. Os dois debates foram promovidos pela Federação Brasileira das Associações Científicas e Acadêmicas de Comunicação (Socicom), atualmente presidida pela professora Margarida Kunsch, da ECA.
A discussão sobre diretrizes curriculares encontra-se em momentos diferentes para os dois cursos. Enquanto Rádio, TV e Internet está em processo de formação do grupo que construirá no Ministério da Educação as propostas de parâmetros para os currículos de graduação, Jornalismo já teve as novas diretrizes homologadas pelo Conselho Nacional de Educação, em setembro do ano passado. Os cursos de Publicidade e Relações Públicas passam pelas mesmas reflexões.
Mercado – O encontro sobre Rádio e TV foi realizado na manhã do dia 14. Uma das questões mais problemáticas levantadas pelos participantes é a identidade da carreira de radialista. Segundo Luiz Artur Ferraretto, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que coordenou o grupo que estuda rádio e mídia sonora no âmbito da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) – quando se propôs que os cursos de Rádio e TV passassem a se chamar Rádio, TV e Internet –, a ideia era fugir da denominação de radialismo, que é constantemente associada a um trabalho que não abarca outras mídias que não o rádio. Assim, acreditava-se que os cursos ganhariam mais um argumento “de venda” e se abririam novas trincheiras para a pesquisa acadêmica.
A proposta vai ao encontro de informações divulgadas em uma pesquisa de 2011, coordenada pela jornalista Nair Prata, professora da Universidade Federal de Ouro Preto: nos cerca de 50 cursos de Radialismo identificados a partir da análise dos dados do Enade em suas edições de 2006 e 2009, a popularização da internet causou impactos significativos. Na região Sudeste, onde se concentra a maior parte dos cursos, três instituições deixaram de ofertá-los em 2012 por falta de demanda. No Nordeste, a Universidade Federal de Pernambuco (UFP) adaptou o curso, adotando a denominação de Rádio, TV e Internet. O mesmo ocorreu na Universidade Federal da Paraíba (UFP). No Centro-Oeste, a Universidade de Brasília (UnB) modificou o curso com vistas para o mercado e o transformou em Audiovisual. Essa realidade faz com que, hoje, existam cursos de graduação que se dedicam à formação de radialistas com as mais variadas nomenclaturas: Rádio e TV, Rádio, TV e Internet, Audiovisual, Radialismo e Multimeios, por exemplo.
“A figura do profissional multimídia afeta muito os cursos de Radialismo, principalmente nas faculdades particulares”, explicou a professora. Um exemplo é o curso de Radialismo da Uninorte, em Manaus, que, segundo a coordenadora Edilene Mafra, “está fadado a fechar”. “O próprio sindicato no Amazonas acha o curso inútil e os alunos reclamam que os estágios e editais só pedem jornalistas”, contou Edilene.
“Se existe essa salada no campo acadêmico, imagina no mercado. O espaço do radialista está sendo roubado pelos patrões e pelos profissionais de jornalismo e publicidade”, disse Sérgio Ipoldo Guimarães, diretor do Sindicato dos Radialistas no Estado de São Paulo, referindo-se principalmente à prática comum em rádios comerciais e emissoras de televisão, que empregam jornalistas para a ancoragem de programas.
Pressionada pelos impactos da internet e pelas disputas no mercado de trabalho, a maioria dos participantes do encontro se mostrou bastante decidida a reforçar e valorizar a identidade de radialista nas comissões que serão montadas para discutir as novas diretrizes curriculares de Rádio e TV.
Por isso também, a associação entre Rádio, TV e Internet e o Audiovisual foi alvo de questionamentos acalorados durante a plenária. No início do evento, a professora Maria Dora Mourão, chefe do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA, contou que foi difícil a experiência de reunir os alunos de Cinema e de Rádio e TV da USP para aulas conjuntas em disciplinas mais gerais. “Foi uma luta convencer os alunos. Eles não se falavam. A metade de Cinema sentava de um lado da sala e a metade de Rádio e TV, do outro.” Para ela, embora o atual curso de Audiovisual opere dentro dos eixos tanto de comunicação quanto de arte, com a convergência das mídias, não faz mais sentido manter os dois campos separados.
A opinião da professora está longe de ser unânime. “Para mim, TV e audiovisual não são a mesma coisa. TV e cinema têm lógicas diferentes. Fazer um programa de TV ao vivo tem uma lógica totalmente diferente”, afirmou Ferraretto.
Século 21 – À tarde, foi a vez de os profissionais e docentes de Jornalismo debaterem de que forma devem ser implementadas as diretrizes fixadas pela Resolução nº1 da Câmara de Educação Superior do MEC, de 27 de setembro de 2013. O documento, que foi elaborado ao longo de um processo que começou em 2008 sob a gestão do então ministro Fernando Haddad, hoje prefeito de São Paulo, orienta as faculdades a organizar o bacharelado de forma a promover uma maior integração entre teoria e prática e valorizar a interdisciplinaridade e a participação ativa dos estudantes durante o curso, desde os primeiros semestres.
A professora Margarida Kunsch deu início à mesa de abertura do fórum sobre jornalismo com um lamento, pedindo um minuto de silêncio pela morte do cinegrafista da TV Bandeirantes Santiago Andrade, atingido por um rojão durante uma manifestação no Rio de Janeiro no início do mês. “Vivemos um momento triste para a liberdade de imprensa no Brasil”, disse ela.
O debate foi também uma oportunidade para discutir os atuais limites e deficiências do jornalismo brasileiro, identificando de que forma as novas diretrizes curriculares nacionais podem contribuir com melhorias no campo. A reforma das diretrizes, desde o início da comissão iniciada em 2008, foi considerada importante pelo entendimento do MEC de que o jornalismo é um dos campos profissionais essenciais à democracia, ao lado de outros, como o direito e a medicina.
Para o professor José Marques de Melo, que coordenou a comissão responsável pelas propostas para as diretrizes, a área, que é ao mesmo tempo ofício, profissão, disciplina e curso, deve se prestar à emancipação da servidão intelectual – mas isso nem sempre acontece. “Temos o problema do jornalismo cifrado. Escrevemos no Brasil para os nossos pares, que têm o nosso repertório, na crença de que estamos escrevendo para todos. Não conhecemos realmente o nosso público”, afirmou ele.
“A aprovação das diretrizes é uma oportunidade, principalmente. Que isso signifique uma mudança de rumo, uma quebra de paradigma de como o ensino tem se dado no Brasil”, disse Eduardo Meditsch, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que capitaneou a leitura crítica da resolução durante o evento. Segundo Meditsch, o espírito do documento é o de orientar a criação de cursos que não sejam para atender aos interesses dos empresários e nem aos corporativismos de sindicatos ou professores, mas sim para formar profissionais capazes de criar o jornalismo que a sociedade brasileira realmente necessita, sem se prender a tradições. Para isso, a primeira quebra de paradigma apontada é o foco na formação de jornalistas críticos, e não exclusivamente acadêmicos. Outra preocupação central é preparar os jovens para uma carreira que dure a vida inteira, passando pelas redações, assessorias de imprensa e também pela academia. Assim, as disciplinas teóricas deverão ser reorientadas em função das necessidades do jornalista, em vez de tomar a forma de matérias introdutórias das ciências sociais. A perspectiva é de que o estudante leia os principais estudiosos do Brasil e seja capaz de aplicar as obras e conceitos no entendimento da realidade com que lida.
Alguns desafios que deverão ser resolvidos na aplicação das diretrizes dizem respeito a garantir que o conteúdo seja tratado como estanque pelos alunos; que o estágio seja supervisionado e tenha caráter pedagógico, não sendo usado como fonte de mão de obra barata; e que o espírito do documento esteja presente tanto nas universidades públicas quanto nas privadas.
Empreendedorismo – Francisco Belda, coordenador do bacharelado da Unesp em Bauru, chamou a atenção a outro desafio importante, que diz respeito à necessidade de preparar os estudantes para uma carreira longeva. “Muitos ex-alunos relatam que o curso forma para ser repórter e não se sentem preparados para outras funções. Eles também reclamam que são formados para serem empregados”, disse Belda, que ressaltou ainda que os egressos têm dificuldades em iniciar e manter start-ups, além de manter o balanço financeiro positivo nas novas empresas.
Essa questão foi uma das que receberam cuidado na montagem do novo curso de Jornalismo da Fundação Universidade Regional de Blumenau (SC), o primeiro do Brasil a colocar em prática as novas diretrizes curriculares: o bacharelado catarinense terá disciplina dedicada ao empreendedorismo. Roseméri Laurindo, que faz parte do grupo de docentes que montou o novo curso em Blumenau, disse que o projeto foi gestado por um debate que já vinha de dez anos atrás e que se buscou inspiração no pioneirismo da Faculdade Cásper Líbero, que abriu um dos primeiros cursos de graduação em Jornalismo no Brasil ainda nos anos 1960, e de Marques de Melo, o primeiro doutor em Jornalismo no Brasil e um dos fundadores do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA. O novo bacharelado de Blumenau começa logo depois do carnaval, com 25 estudantes matriculados.
“A gente tem consciência de que no momento histórico que vivemos não basta o jornalismo se basear no que foi estabelecido pela tradição. Os profissionais da área precisam ser preparados para trabalhar com o mundo em mutação e reinventar o jornalismo. Não basta conhecer as técnicas. É preciso conhecer as teorias por trás das técnicas, que estão em constante mutação”, afirmou Meditsch, numa referência a Paulo Freire.
Segundo Manuel Carlos Chaparro, também docente da ECA, os avanços das tecnologias digitais fizeram com que o intervalo entre o acontecimento e a produção do material jornalístico fosse suprimido, explicitando a necessidade de a cultura jornalística se reinventar: “É preciso acabar com essa arrogância de que o mundo tem que se adaptar ao jornalismo. Não é o mundo que faz parte do jornalismo, é o jornalismo que faz parte do mundo. O avanço tecnológico dá razão a Darcy Ribeiro, quando dizia que os avanços da civilização não se dão por luta de classes, mas por revoluções tecnológicas. E o que está acontecendo com essa revolução é um avanço extraordinário sob o ponto de vista social e cultural, porque está na hora de enterrar com missa solene a convicção que sustenta a arrogância da cultura jornalística de acreditar que o jornalista tem que falar pelos outros. É muito melhor um mundo onde todos possam falar”, concluiu.