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Assange faz pronunciamento da janela da
embaixada equatoriana em Londres –
Foto: www.wpjf.org.uk
Fidel Narváez ainda era apenas um imigrante equatoriano comum em Cambridge, na Inglaterra, quando desafiou publicamente a poderosa BBC, uma das maiores emissoras do mundo, a provar a veracidade de informações veiculadas sobre o Equador. Em 2007, a emissora inglesa publicou a notícia de que o governo equatoriano teria recebido 250 milhões de dólares da Venezuela para lutar contra o governo de George Bush, entre outras informações falaciosas. Somente um ano após o pedido de retratação feito por Fidel, a BBC desculpou- se publicamente por haver veiculado informações falsas. Atualmente, Fidel Narváez é Consul equatoriano em Londres, e desempenha suas funções em meio aos conflitos diplomáticos que envolvem a embaixada equatoriana. Julian Assange, editor do Wikileaks, e um dos maiores símbolos atuais da luta pela democratização e transparência das informações, está refugiado na sede da Embaixada desde junho desse ano. Para Fidel, proteger Julian é um privilégio, mas também um grande desafio político. Em entrevista, o Consul fala sobre as contribuições e o papel do Equador na batalha pela democratização das informações, o asilo político de Julian Assange e os desafios de representar um país que cada vez mais tem desempenhado um papel fundamental no cenário internacional.
Brasil de Fato – Em 2007 você desafiou publicamente uma das principais emissoras do mundo, a BBC, por falsas informações difundidas sobre o governo do Equador. Hoje você ocupa o cargo de Consul equatoriano em Londres. Desde junho desse ano, Julian Assange, editor do Wikileaks, está refugiado na embaixada do Equador. Como você vê a relação entre sua própria trajetória política de militância (na batalha pela transparência das informações) como cidadão equatoriano no Reino Unido e seu cargo oficial atual na chancelaria que refugia um dos maiores símbolos atuais dessa luta?
Fidel Narváez – Quando a BBC se viu obrigada a reconhecer formalmente que havia emitido informações falsas sobre o governo equatoriano, respondeu à minha reclamação (feita a nível pessoal, como um ativista social), quer dizer como apenas um cidadão a mais da audiência. Provavelmente por isso, minha reivindicação demorou um ano inteiro para ser esclarecida. Um ativista, diferentemente de um diplomata, não se preocupa, de forma geral, se suas ações afetarão ou não seu relacionamento futuro com quem enfrenta. Tampouco evita a exposição midiática. Pelo contrário, a utiliza como parte de sua estratégia. Em contraposição a isso, um diplomata deve cuidar ao extremo com o que diz, deve responder à linha oficial de seu país e deve respeitar alguns códigos de relacionamento determinados pelas relações diplomáticas. Julian Assange é de fato o exilado político de maior relevância mundial na atualidade por ser, sobretudo, uma referência para o ativismo contestador pela liberdade e transparência da informação. Protegê-lo é um privilégio, mas também um desafio, que posso assumir tanto como ativista, como diplomata.
Como você analisa hoje o que poderíamos chamar de batalha internacional pela democratização das informações e pela transparência dos governos?
As principais batalhas pela democracia nesse século estão situadas nos campos midiáticos. De um lado, há um verdadeiro poder fático por detrás dos meios de comunicação em massa internacionais, assim como grupos midiáticos com poder de mercado dominantes em cada país. De outro lado, há uma cidadania que cada vez tem maior acesso tecnológico à informação, e que, além disso, pode ser agora geradora de informação e opinião. Todavia, o que poderia ser uma espécie de contrapeso informativo cidadão, não o é, pois o poder dos meios de comunicação em massa é demasiadamente grande. As redes sociais e a internet não bastam para fazer o contrapeso; o que se requer é a democratização da propriedade dos meios de informação, empoderando a cidadania de meios alternativos, e também promovendo meios de comunicação comunitários. Se esses meios são um contra poder necessário para controlar o poder político, quem controla esse contra poder dos meios quando ele de fato atua politicamente para proteger interesses de grupo? É muito comum concluir que se atenta à liberdade de expressão quando governos censuram jornalistas, algo que certamente é condenável, porém quase não se fala sobre o conluio dos meios de comunicação para perseguir governos. A América Latina desse século pode muito bem liderar esse debate a nível internacional.
A partir do impacto das informações dos Wikileaks em todo o mundo, o Equador se converteu no primeiro país a firmar um acordo de livre acesso a todas as informações com essa organização. Em que consiste esse acordo firmado entre a chancelaria equatoriana e o site Wikileaks sobre a acessibilidade às informações relacionadas ao Equador?
Não se trata de nenhum acordo formalizado em nenhum documento firmado. Em essência, o Equador solicitou que se libere toda informação referente ao nosso país, e Wikileaks conseguiu fazê-lo, publicando por completo na web. Inicialmente, Wikileaks tinha acordos com os dois maiores meios impressos do Equador, o que não somente limitava a capacidade de publicação de uma informação tão extensa, como, sobretudo, por se tratar de meios marcadamente opositores ao regime, estes escolhiam como “relevante” principalmente aquilo que poderia ser usado contra o governo. Para Wikileaks, parecia difícil acreditar que no espectro midiático equatoriano, sobretudo no que se refere à impressa escrita, não exista realmente um equilíbrio editorial, quer dizer, que no mercado não compitam diversas linhas editoriais “independentes” confrontando posições. No Equador, a imprensa escrita opositora domina praticamente o mercado informativo, e em muitos casos com sérias falhas de objetividade e de profissionalismo. A única linha editorial contrária é a do diário público, criado nesse governo, e que nesse sentido é percebida como dependente do regime. Portanto, a pedido do Equador, e também para assegurar uma total e estrita transparência, desde maio de 2011, Wikileaks publicou para livre acesso todas as informações relacionadas ao Equador, assegurando por sua vez que tais informações não sejam de forma nenhuma manipuladas. Nesse sentido, o caso do Equador é único, porque normalmente a reação dos governos frente ao Wikileaks foi sempre de evitar ou minimizar o tema. O governo do Equador apostou na transparência total, inclusive frente ao risco político de que certas informações pudessem prejudicá-lo.
Como funciona na prática essa iniciativa de livre acesso e como funciona a política de transparência institucional do governo do Equador? Livre acesso à informação hoje em dia significa que qualquer cidadão, seja jornalista, investigador, estudante, político ou o que for, desde um computador, possa acessar as informações oficiais relevantes, somente com uma conexão à internet. Nesse caso concreto das informações diplomáticas sobre o Equador, a chancelaria equatoriana desde maio de 2011 também facilitou o acesso público a toda informação.
A política de transparência no Equador em geral exige das estatais um sistemático exercício para colocar na internet toda informação possível sobre sua gestão e sobre os assuntos de interesse cidadão, o que é evidentemente muito mais do que fotos de funcionários cumprindo suas atividades. Os cidadãos podem acessar a informação oficial dos projetos em execução e seus avanços, da execução anterior à gestão dos recursos estatais, do estado de algum trâmite judicial, da agenda dos funcionários de alta responsabilidade, etc… O Equador tem, além disso, uma Lei de Transparência e Acesso à Informação Pública que obriga as instituições a responder a qualquer requerimento de informação dentro de um prazo de tempo. A nova estrutura do Estado, a partir da nova Constituição, criou um novo poder chamado “Conselho de Participação Cidadã e Controle Social” composto exclusivamente pela sociedade civil, com a tarefa de vigiar a transparência da gestão institucional em diferentes níveis, fundamentalmente através do controle cidadão. Além disso, o poder executivo conta com a Secretaria de Transparência e Gestão, com a função de investigar e dar seguimento a qualquer denúncia de corrupção a nível estatal.
Ainda sobre o tema da censura e transparência: sabemos que os mecanismos de censura servem hoje para esconder arbitrariedades de poder militar e político. Julian Assange, editor de Wikileaks, é hoje um dos principais símbolos internacionais do antiestablishment, sobretudo por ter exposto a todo o mundo provas concretas de abusos de poder. Conhecemos as razões políticas das acusações e perseguição contra ele. Como você vê o futuro de Julian na atual conjuntura?
O asilo político concedido pelo Equador a Julian Assange é, em essência, um tema claramente humanitário, à luz de princípios de direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Por isso, e não por menos, tem suscitado o debate internacional sobre a liberdade de expressão e de imprensa, assim como sobre a transparência desde os poderes políticos, também sobre a proeminência do dever de denunciar abusos de poder em relação às “confidencialidades” da informação de Estado, e finalmente sobre o direito da sociedade de conhecer tais abusos. Da mesma forma, o asilo viabiliza e contrapõe sérias diferenças conceituais e até mesmo de princípios na geopolítica atual. O Equador, por exemplo, não reconhece que a pretexto da “segurança nacional” se condene alguém com pena de morte, nem com prisão perpétua, posto que acreditamos no direito à redenção. Tampouco aceitamos o confinamento desumano, nem as práticas de tortura para obter informações, como aparentemente se estaria usando no caso do soldado Bradley Manning, relacionado com a investigação que também pesa sobre Wikileaks e Julian Assange.
O fenômeno Wikileaks é relevante nesse debate porque, como uma iniciativa cidadã, confrontou tanto a falta de transparência do poder político representado nos governos, como de fato o poder dos grandes meios de comunicação, capazes de proteger, ou de subverter como no caso, através dos mecanismos de censura a que você se refere, o poder político segundo determinados interesses. Daí o fato de Julian Assange ter tantos e tão poderosos inimigos.
A duração da estadia de Julian Assange na Embaixada do Equador é imprevisível. Todavia, tanto nós quanto ele estamos otimistas no sentido de que uma solução diplomática e política será possível para permitir sua saída daqui, com a garantia de que sua segurança não corra perigo.
Como você analisa o futuro das relações diplomáticas entre Equador e Reino Unido sobre a questão do asilo político de Assange?
Dentro das minhas funções nessa sede diplomática não me corresponde referir- me a esse tema de maneira oficial. Em termos muito gerais, é claro que nesse momento estamos em um impasse diplomático e vivemos uma diferença de critérios em torno da pertinência de proteger Julian Assange das ameaças provenientes dos Estados Unidos. Em todo caso, para isso existe a diplomacia, para aproximar posições diferentes, resolver impasses e encontrar uma saída aceitável para ambos os países.
Esse desacordo pontual não deveria afetar relações tradicionalmente amigáveis e respeitosas entre os dois países, ainda mais hoje quando existe um grande potencial de colaboração em diferentes âmbitos. Por exemplo, o Equador, com base em um crescimento importante de sua economia e de uma aposta ambiciosa na educação universitária de qualidade, decidiu investir fortemente em bolsas estudantis no exterior, em pesquisa e economia. Está previsto que em um ano o país financiará até 5.000 bolsas de todos os níveis no exterior. Essa é uma grande oportunidade para as prestigiadas universidades britânicas que, por sua vez, solicitam o autofinanciamento. Da mesma forma, no âmbito turístico e comercial, existe um grande potencial que pode e deve perfeitamente desenvolver-se, ainda que persista um desacordo em torno na questão do asilo político de Assange.
É crível a possibilidade de um translado de Assange à Suécia para responder suas acusações (com base na cobertura legal do Convênio de Viena) sem que haja uma interferência do Reino Unido para sua extradição aos Estados Unidos?
O Equador sempre foi muito claro no sentido de que não protege Julian Assange da Suécia, e tampouco busca interferir no sistema de justiça sueco. Julian Assange não deve evitar a investigação pendente na Suécia. O Equador ofereceu- se inclusive para facilitar que esse interrogatório seja efetuado, o que seria muito saudável a todos. A Suécia se recusou a proceder com o interrogatório fora de seu território, ainda que essa seja uma alternativa legal e logisticamente possível. O problema concreto para nós reside no fato que não existam garantias de que não se produzirá uma segunda extradição desde a Suécia aos Estados Unidos, onde os direitos humanos de Julian Assange então correriam sério perigo, e em suma essa é a razão de fundo da proteção que o Equador concede a ele através do asilo. Deve considerar-se que esse não é um tema somente legal, como também evidentemente político, por todas as conotações que tem produzido. A legislação, no tema das extradições, vigente no Reino Unido contempla a possibilidade de garantir que não haveria uma segunda extradição, porém nesse momentos tampouco temos encontrado uma vontade política do Reino Unido para aplicar essa norma.
Como se posicionaria o governo equatoriano no caso de uma eventual invasão da policia britânica na embaixada?
A ameaça de invadir nossa Embaixada, feita tanto de maneira formal através de comunicação escrita, como de maneira simbólica ao rodear o edifício durante a noite com um contingente impressionante de policiais que chegaram até a fechar o trânsito das ruas ao redor, felizmente foi superada. O Equador acredita que esse incidente deve ficar para trás, para que seja possível desenvolver um diálogo construtivo. Aquele foi um erro rechaçado contundentemente pelo Equador e também condenado unanimemente pela comunidade internacional, que inclusive provocou uma impressionante solidariedade a nosso país em toda América Latina. Uma eventualidade assim seria simplesmente inconcebível e inaceitável, mas eu não creio que seja pertinente analisar esse hipotético cenário.
Em um nível mais amplo, como você avalia a contribuição do Equador (considerando também o asilo político de Assange) no debate atual sobre a luta pela democratização das informações e o que chamamos de batalha pela transparência?
O debate sobre a liberdade de expressão no interior e ao redor do Equador é tão intenso e rico ao mesmo tempo que, apesar da extrema polarização entre governo e meios de comunicação, resulta em um processo positivo para a sociedade. No meu ponto de vista, isso incentiva mais o pluralismo, faz com que os cidadãos reflitam cada vez mais sobre o verdadeiro significado e sobre o verdadeiro alcance da liberdade de expressão.
Já não apenas se debate sobre o legítimo direito da imprensa em questionar ou vigiar os governantes, sem que nesse processo exista nenhuma censura prévia, senão que paralelamente se debate também a responsabilidade dos meios sobre o que publicam, sobre o direito da sociedade em exigir que a informação que recebem seja verídica, objetiva e contextualizada. Os cidadãos equatorianos decidiram finalmente que a imprensa deve ser regulada pela sociedade. Essa decisão vem desde a legitimidade democrática da nova Constituição, como de um referendo com uma pergunta específica sobre o tema. Porém, até o momento, mesmo após quase quatro anos de discussão, não foi possível cumprir esse mandato cidadão, justamente pela oposição feroz dos meios de comunicação, o que certamente demonstra de fato o poder que constituem.
Ao conceder asilo político a Julian Assange, os ataques ao Equador se incrementaram por parte de grupos de pseudodefesa da “liberdade de expressão”, tratando talvez de minimizar o papel que o Equador já vinha cumprindo na luta pela democratização da informação. Se o ato de proteger Julian Assange é percebido também como uma postura a favor da transparência total por parte dos governantes pela cidadania, ótimo. Que um país tenha finalmente como bandeira essas bandeiras próprias da sociedade civil é a melhor prova de que o Equador agora pode desempenhar um papel importante no cenário internacional.
<Os gigantes contra Wikileaks>
O jornalista e ciberativista australiano, Julian Paul Assange, é um dos fundadores e principal porta voz do WikiLeaks, um arquivo web de denúncias e vazamento de informações. No ano de 2010, após o vazamento de uma vasta massa de documentos sobre crimes de guerra cometidos na Guerra do Afeganistão e na Guerra do Iraque pelo Exército dos Estados Unidos, Assange passou a ser acusado de estupro e abuso sexual na Suécia e a Interpol o colocou em sua lista de procurados. No dia 7 de dezembro, em Londres, Assange apresentou- se à Polícia e negou a veracidade das acusações contra ele, sendo liberado nove dias depois. Em 31 de maio de 2012 a corte suprema do Reino Unido anunciou sua decisão a favor da extradição de Julian Assange para a Suécia.
O jornalista teme que, tão logo chegue à Suécia, seja extraditado para os Estados Unidos e processado por espionagem, fraude e abuso de computadores. A Suécia tem um amplo acordo de extradição com os EUA. No caso de extradição para os EUA, Assange pode enfrentar a prisão perpétua. Ativistas de direitos humanos têm denunciado que o soldado Bradley Manning, suposto informante do WikiLeaks, está preso na base naval de Quantico e é mantido nu, em isolamento, impedido de dormir, sob iluminação direta e vigilância de câmeras 24 horas por dia. Trata-se do que a CIA chama de “tortura sem contato” (no-touch torture).