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Por Eduardo Sales de Lima e
Renato Godoy de Toledo
da Redação
Cuba, a principal experiência socialista da história do mundo ocidental, está em um processo de transformação iminente. Os cubanos devem vivenciar, nos próximos anos, as maiores mudanças no país desde o triunfo da revolução comandada por Fidel Castro em 1959.
Para reverter o processo de estagnação da economia da ilha, os dirigentes do Partido Comunista Cubano (PCC), o único do país, convocaram o seu VI Congresso para abril de 2011 para discutir mudanças econômicas e políticas no país, com o pretexto de “atualizar” o modelo cubano.
O presidente Raúl Castro, que substitui o irmão Fidel desde 2008, é apontado como um dos grandes entusiastas das mudanças e dos debates com a população, inclusive com a presença de dissensos, o que é considerado um avanço para o modelo cubano, frequentemente criticado por suas decisões de cima para baixo.
Ao contrário do que se esperava, a gestão de Barack Obama na Casa Branca, não aliviou o bloqueio à economia cubana, e esse boicote continua sendo a maior causa de atrofiamento do país.
Além do embargo, Cuba sente os efeitos da crise econômica mundial, da redução das exportações em 15% e as consequências de 16 furacões que devastaram a ilha entre 1998 e 2008. Estima-se que os fenômenos naturais causaram um prejuízo de 20,5 bilhões de dólares.
Com esse cenário, o Estado cubano acusa fadiga e apresenta sinais de que não consegue mais ser o único indutor da economia. A abertura de setores da economia à iniciativa privada talvez seja uma das principais mudanças previstas para os próximos anos. Ela, por si só, desperta uma série de questões na esquerda mundial.
Estaria Cuba migrando lentamente para o capitalismo? Estaria espelhando-se no modelo chinês? Ou trata-se de uma mudança emancipatória, com menos paternalismo estatal e mais protagonismo da população?
Associativismo
Para Frei Betto, um dos principais especialistas em Cuba no Brasil, as concessões como a instauração de empregos autônomos privados não devem ser interpretadas como privatização, mas “desestatização”. “O governo cubano, na avaliação que faz frente à crise econômica grave, constata que o Estado foi excessivamente paternalista. As pessoas dependiam do Estado como provedor, para os mínimos detalhes. O que o governo quer agora é incentivar iniciativas pessoais e associativas. Não é propriamente uma abertura para a iniciativa privada tal como a concebemos nos países capitalistas. As medidas visam a que as pessoas possam gerar a sua própria renda, a partir de iniciativas individuais, mas, sobretudo, associativas, cooperativas. É o empreendedorismo. Essa é a linha que eles querem abraçar”, explica Frei Betto.
Uma das medidas que consta do documento preparatório do Congresso do PCC, que já circula entre a população, prevê o fim da libreta de abastecimento, que subsidia produtos da cesta básica.
Estado inflado
Outra ação polêmica deve ser o enxugamento da burocracia estatal. Acredita-se que de 500 mil a 1 milhão de trabalhadores vinculados ao Estado devam deixar seus postos. A medida, inicialmente, parece extraída do receituário neoliberal, mas os defensores do modelo cubano apontam que é essencial para a manutenção do socialismo.
O cônsul-geral de Cuba no Brasil, Lázaro Méndez Cabrera, assume que o país tem errado em sua política de amparo estatal, e, ao mudá-la, o socialismo não é prejudicado, mas reforçado. “Cuba não fará uma reforma do socialismo. Estamos trabalhando numa adequação e atualização do socialismo cubano. São centenas de profissões que terão liberdade individual e livre comércio. Elas se reúnem com outras, ampliam-se, então há a necessidade de reduzir o aparato de Estado, que está completamente inflado. Não há economia que resista a isso”, aponta.
Ele também critica o que ele chama de “igualitarismo”, que tem sido praticado em Cuba. “Temos que trabalhar forte para mantermos a igualdade entre os cubanos, mas temos que trabalhar também para desterrar o igualitarismo. O igualitarismo não faz bem. Ou seja, é um problema dar a mesma coisa para os que necessitam e para aqueles que não necessitam. Muitas pessoas lucram com certos produtos e os revendem”, diz, referindo-se a algumas gratuidades existentes na ilha.
O escritor cubano Félix Contreras é um crítico do acomodamento de milhares de funcionários improdutivos dentro do Estado. Ele aponta abusos, como a presença de 300 mil funcionários no Ministério do Comércio Exterior, em um país em franca dificuldade econômica e uma população de apenas 11 milhões de habitantes.
“Para o governo Raúl – que tem os pés mais no país e os olhos voltados para dentro de casa –, o modelo econômico não dá mais. Há uma imensa improdutividade de trabalhadores, uma quantidade de postos de trabalho sem conexão com o aparato produtivo e uma colossal quantidade de gente no aparato da burocracia. A economia cubana tem sido tratada mais como um veículo de domínio político do que um processo de produção e distribuição, esquecendo uma das principais leis do socialismo: de cada qual segundo sua capacidade, e a cada qual segundo sua necessidade”, avalia.
Mudanças necessárias
Segundo o escritor, aqueles que se beneficiam do paternalismo estatal estão angustiados com a iminência de perder seus privilégios no próximo período. Para ele, as mudanças e concessões ao setor privado não contradizem os rumos socialistas da revolução, já que Cuba precisa adaptar-se às novas condições econômicas do mundo e da região.
Para o historiador brasileiro Luiz Bernardo Pericás, a dinâmica da economia cubana dos últimos anos atingiu um nível insustentável, tornando premente a necessidade de reformas e reestruturação. “Se olharmos a questão estritamente em termos econômicos, há uma urgência pela implementação de ajustes, ou corre-se o risco de uma paralisia completa do setor produtivo, que é subutilizado e mal gerenciado. Para se ter uma ideia, somente metade da área agricultável da ilha é utilizada, há um déficit habitacional enorme e pelo menos 70% dos alimentos consumidos no país são importados”, salienta.
Modelo chinês? NEP cubana?
Quando se fala em um modelo socialista em que o mercado passa a ganhar importância maior, é inevitável a comparação com as saídas chinesa e vietnamita – países governados por partidos comunistas, mas com práticas capitalistas.
A Nova Política Econômica (NEP) levada por Lênin na Rússia em 1921 também serve de comparativo, já que à época o líder soviético fez concessões a pequenas propriedades privadas a fim de reerguer o país arrasado pela 1ª Guerra Mundial. Em defesa da medida, Lênin afirmou que a União Soviética “dava um passo atrás para dar dois à frente”.
As comparações podem até ser elucidativas, mas são rechaçadas pela maioria dos especialistas. O cônsul-geral de Cuba no Brasil, Lázaro Méndez Cabrera, admite que Cuba já tentou se inspirar no modelo chinês, por vezes, mas nunca obteve êxito. “Não se pode comparar a China com Cuba, são realidades muito diferentes em vários níveis. Também não acho que estejamos dando um passo atrás para dar dois à frente”, aponta.
O historiador Luiz Bernardo Pericás acredita que exista o perigo ético na oficialização de um “socialismo de mercado” à la China e Vietnã. Mas não crê que esse seja o desfecho mais certo. “O mais provável é que Cuba construa um modelo próprio, a partir de suas características singulares, mas tendo como inspiração os modelos chinês ou vietnamita. Haverá, possivelmente, uma maior abertura para empresas privadas (em setores não-estratégicos) e a continuação e ampliação do que já existe há muitos anos no país, os pequenos negócios, serviços, restaurantes, entre outros. Uma parte da propriedade social deixaria de ficar nas mãos do Estado e passaria para cooperativas (como no caso da agricultura)”, prevê.